HOMENAGEM: A RAQUEL PEREIRA, DEFENSORA DA VIDA E DE UMA EDUCAÇÃO LIBERTADORA.

Raquel Pereira hoje faz 7 dias foste mora na casa do pai,
Não morrestes, pois acreditamos que tu estás viva.
Uma lutadora do povo nunca morre
Teus sonhos de uma sociedade justa e de uma Educação libertadora
Não morreram continua firma,na memória e na vida dos camponesas e camponeses de cada um que faz parte da Amigreal
Tu estivesse presente entre nos, compartilhando nossas lagrimas,foste perseguida e sonhaste como nos em sociedade socialista
Reconhecemos-te como lutadora do povo, em defesa da vida e da libertação.
E como diz Dom Pedro Casaldáliga
A grande verdade é que só vence aquele que continua,
aquele que persiste, aquele que tem esperança e sabe passar a bandeira às novas
gerações. Eu continuo cada vez com mais esperança. Essa é a minha vitória
Igaci-AL,28 de janeiro de 2011

Fraternalmente
Coordenação da Amigreal

A Via Campesina Brasil e a questão das sementes

1. As sementes e a origem da civilização

No princípio, o ser humano vivia de plantas silvestres, da caça e da pesca. Pouco a pouco, as pessoas foram observando as plantas de seu interesse, selecionando e utilizando aquelas que lhes davam mais rendimento. Assim, as plantas que produziam frutos e sementes comestíveis foram as primeiras a serem aproveitadas na alimentação.

A agricultura teve origem nas regiões montanhosas dos países de clima quente e temperado. As plantas cultivadas se espalharam pelo mundo principalmente através da migração humana.

Da pré-história aos tempos atuais, o milho, a batata e otomate saíram da América e foram para a Europa. O arroz saiu da Ásia e veio para a América. Com o passar do tempo, essas plantas se adaptaram em cada região onde eram cultivadas e selecionadas pelos processos naturais e simples dos agricultores. E assim surgiram as sementes rústicas, muitas delas bem adaptadas e totalmente conhecidas pelos agricultores.

A partir do início do século XX, os recursos genéticos vegetais, uma herança comum de toda a humanidade há mais de 10.000 anos, foram sendo transformados, gradual e crescentemente, em propriedade de um reduzido grupo de empresas privadas estadunidenses e européias.

Soberanos, Escravos e Tiranos

Os agricultores e principalmente as agricultoras, foram os primeiros cientistas empíricos da humanidade. Desde os tempos mais remotos, os agricultores têm conservado, selecionado e melhorado suas sementes para semeadura, inclusive realizando trocas com outros grupos camponeses, num processo de partilhas que lhes permitiam aumentar a diversidade genética à sua disposição. Com essa prática milenar, o resultado foi uma impressionante diversidade de cultivos e variedades utilizadas na produção agrícola.

Há muito tempo já se sabe que existem regiões em que a diversidade de espécies é maior. Esses locais se chamam Centros de Diversidade: regiões ao redor do mundo que abrigam reservatórios de material genético que pode ser transferido para plantações através de técnicas tradicionais de melhoramento genético.

E é nos países mais pobres, nos países do terceiro mundo, que se encontra a maior variedade de espécies. Para se ter uma idéia do problema, na década de 1970, das 200 espécies vegetais cultivadas na Califórnia – Estados Unidos, nenhuma era originária daquele país.

Daí a importância das sementes para o que chamamos de SOBERANIA ALIMENTAR, quando um povo tem o direito de definir sua própria produção, distribuição e consumo de alimentos. Um povo que não produz sua própria comida é povo escravo, pois depende de outros povos para se alimentar. Nenhuma nação será soberana se não tiver o domínio da produção de suas sementes.

Hoje, está se perdendo grande parte desta diversidade. Muitas dessas variedades estão desaparecendo e se extinguindo. Com o modelo capitalista de “modernização” da agricultura, a diversidade está drasticamente reduzida e o agricultor tornando-se cada vez mais dependente da aquisição dos cultivares impostos pelos pacotes tecnológicos.

Antes, as sementes pertenciam aos povos camponeses e indígenas. Pertenciam a toda a comunidade, era um bem comum, um símbolo da vida. Tanto que, em muitas culturas, as sementes eram vistas como algo sagrado.

Hoje, as sementes se tornaram mercadoria. Representam apenas negócios, lucros e a exploração e o domínio dos produtores rurais de todo o mundo por grandes empresas capitalistas multinacionais.

Não foi por acaso que as grandes empresas multinacionais de venenos abocanharam as empresas de produção de sementes. O negócio é extremamente lucrativo para elas, pois, junto com a venda das sementes, são vendidos ao agricultor os agrotóxicos e os adubos químicos que elas próprias – as multinacionais - industrializam. A semente, hoje industrializada pelos grandes monopólios, é um produto viciado, isto é, está drogada, pois só se reproduz se esse pacote agronômico for seguido à risca.

Essa apropriação privada da geração, reprodução e distribuição de novas variedades de sementes pelas empresas privadas multinacionais, assim como o controle da oferta dos insumos que elas requerem, vêm submetendo os povos de todo o mundo a uma tirania de novo tipo.

2. A “Revolução Verde” e seus prejuízos

Toda essa tecnologia foi introduzida com a chamada“Revolução Verde”. Em vez de aumentar o desenvolvimento dos povos, fez com que eles ficassem cada vez mais dependentes da indústria agroquímica. Com o monopólio da produção das sementes; e o desaparecimento da diversidade genética, o futuro da humanidade está em risco.

Agora, a segunda fase da “Revolução” está em pleno andamento, com a expansão dessas multinacionais no controle da produção e o comércio de sementes; e, quem controla as sementes, controla todo o sistema alimentar.

O mecanismo é simples e fácil de entender: as multinacionais controlam a produção e o comércio de sementes que são “melhoradas”, eliminando as resistências naturais e aumentando a vulnerabilidade das culturas. Cria-se, assim, a dependênciados agrotóxicos. As multinacionais que fabricam agrotóxicos são as mesmas que controlam o “melhoramento”, a produção e a comercialização das sementes. A uniformidade genética leva à perda de variedades e à vulnerabilidade das plantas às pragas e doenças.

Fecha-se o cerco da dependência, e as plantas transgênicas coroam o esquema. Eis porque as multinacionais estão tão interessadas em patentear variedades e cultivares de plantas. É a proteção oficial de sua pirataria e banditismo.

Os povos pré-históricos alimentavam-se de mais de 1.500 espécies de plantas e pelo menos 500 dessas espécies e variedades têm sido cultivadas ao longo da história. Hoje, alimentamo-nos basicamente com apenas 30 vegetais cultivados e, desses, trigo, arroz, milho e soja representam mais de 85% do consumo de grãos.

A agricultura de subsistência cultiva as principais plantas alimentícias há mais de 10.000 anos. Privá-los desse recurso é, pelo menos, uma perversidade, até porque o agricultor de subsistência é um melhorista nato, porque sempre, há milênios, tem reservado para o próximo plantio, as sementes das melhores plantas.

Ao privá-lo dessa possibilidade, o agricultor se vê roubado em sua herança mais significativa, equilibrada e barata, que são as variedades locais cultivadas há milênios. Por outro lado, a segurança do abastecimento e a base para um amplo melhoramento vegetal estão ligadas a que os agricultores se mantenham no ambiente rural. Essas famílias protegerão, como têm feito há milênios, os recursos genéticos vegetais melhor do que qualquer banco de genes.

As sementes são herança comum de todos os povos e não podem ser apropriadas por quaisquer empresas privadas. O acesso ao material genético é um direito natural da humanidade. Não tem dono!

3. A biotecnologia e os transgênicos

São três as causas principais da tirania econômica, social e política determinada pelo monopólio mundial das sementes:

a) A primeira causa é o crescente desenvolvimento dos métodos e técnicas de melhoramento de plantas por empresas privadas. Esses métodos produziram um grande número de sementes congênitas, híbridas, sintéticas; contemporaneamente, produziram também organismos geneticamente modificados (OGM), conhecidos como transgênicos. Para que apenas essas empresas pudessem se beneficiar com os resultados dessa tecnologia e garantir grandes lucros, os governos de vários países em todo o mundo foram pressionados a aprovarem leis que garantissem os direitos dos melhoristas e o patenteamento dos seus produtos. São as chamadas LEIS DE PATENTES. Aproveitando-se dessas leis, as grandes empresas saqueiam e roubam nossa diversidade, registram em seus nomes plantas que nossos ancestrais sempre utilizaram e, ao mesmo tempo, proíbem outras pessoas e empresas de aproveitarem os melhoramentos genéticos.

b) Uma segunda causa foi a diminuição paulatina dos investimentos dos governos nas áreas de pesquisa em agricultura, tanto em empresas públicas de assistência técnica quanto em universidades. Assim, a geração de conhecimentos e de descobertas só poderia favorecer a acumulação capitalista das corporações privadas. Para isso, os governos tomaram várias medidas beneficiando grandes empresas, tais como:

· A redução dos recursos públicos para a pesquisa na agricultura;

· O fechamento de centros de pesquisa ou a redução drástica do seu pessoal;

· A realização de acordos e convênios entre as instituições governamentais e empresas privadas para a realização de pesquisas, tendo em vista os financiamentos efetivados pelas empresas;

· O amplo e continuado processo de formação de pessoal no exterior em universidades altamente dependentes de financiamentos privados, com a conseqüente ideologização da pesquisa a partir dos interesses das empresas privadas;

· A cooptação de pesquisadores pelas fundações e empresas privadas através de bolsas de estudos avançados, de créditos para a pesquisa, de viagens ao exterior para a participação em simpósios, congressos e encontros, de participação comercial pela venda dos produtos gerados;

. As pressões econômicas, políticas e ideológicas (os“lobbies”) sobre os parlamentares e os dirigentes do Poder Executivo para a aprovação de legislação favorável aos interesses da privatização da pesquisa na agricultura e a redução dos orçamentos para a pesquisa e para a formação avançada de pessoal das instituições públicas;

A posição alienada de grande parte dos pesquisadores da agricultura que, em nome da ciência, aceitam a hegemonia dos interesses privados na geração de conhecimentose a transformação do saber em “capital”.

c) A terceira causa é conseqüência das duas primeiras: a perda continuada da capacidade dos agricultores de produzirem as suas próprias sementes.

Como as políticas públicas incentivavam o uso de sementes melhoradas como as híbridas e, em alguns países, as transgênicas, cujas patentes eram e são propriedades privadas, as sementes dos camponeses deixaram de ser uma alternativa de plantio e foram desaparecendo dos mercados. A intenção das grandes empresas é reduzir cada vez mais a variedade de sementes. Desta forma, as sementes crioulas são perdidas de propósito, porque apresentam alta variabilidade. A tendência é para uma base genética limitada. Com esta eliminação aos poucos das sementes “crioulas”, o agricultor perdeu em diversidade genética, mas também foi perdendo sua auto-estima, sua capacidade de melhorar geneticamente as sementes. Foi perdendo seu papel e sua identidade.

A armadilha funciona assim: quando se extinguem variedades tradicionais de sementes, as comunidades perdem uma parte de sua história e de sua cultura. As espécies vegetais perdem uma parte de sua diversidade genética. As gerações futuras perdem algumas opções e a geração presente perde a confiança em si mesma. O tipo de semente que o amponês semeia determina em grande medida suas necessidades de fertilizantes e agrotóxicos. A semente influi na necessidade do maquinário e determina qual é o mercado para a colheita... As comunidades que perdem as variedades tradicionais, que, durante séculos, adaptaram-se às suas necessidades, perdem o controle e tornam-se dependentes para sempre de fontes externas de sementes e de produtos químicos necessários para cultivá-las e protegê-las.

Quando as grandes empresas determinam o que o agricultor deve plantar, está determinando também o que nós devemos comer. Com poucas alternativas de alimentos e bombardeadas por propagandas dos meios de comunicação, o consumidor também se torna refém dessa armadilha.

Uma das formas usadas pelas grandes empresas para dominarem o mercado de sementes e convencerem governos a se submeter a seus planos é dizer que as sementes híbridas ou transgênicas combatem a FOME. Desde a década de 1950, justamente no início da “Revolução Verde”, que se afirma que é necessário aumentar a produtividade agrícola para combater a fome no mundo. A Organização para a Alimentação e a Agricultura – FAO, das Nações Unidas, foi uma das instituições multilaterais que estimulou a introdução de sementes híbridas no mundo com essa finalidade.

As grandes empresas se tornaram cada vez maiores. Compraram outras empresas, dominaram o mercado, controlaram os agricultores. E a fome continua. Hoje, em todo mundo, 800 milhões de pessoas passam fome e 2,4 bilhões são mal nutridas. Está claro que não falta alimento. Com a produção atual de alimentos, cada pessoa no mundo poderia comer todos os dias: 1,7 kg de cereais, feijões e nozes; 200 g de carne, leite e ovos; e 0,5 kg de frutas e vegetais.

A verdadeira causa da fome está no latifúndio e na falta de apoio à agricultura familiar, que marginaliza 1,35 bilhões de agricultores e suas famílias. E agora, mais uma vez, as grandes empresas repetem a história e o truque de que com as sementes transgênicas é possível acabar com a fome, desta vez apoiadas por um leque maior de poderosas organizações, como a Organização Mundial do Comércio – OMC, o Fundo Monetário Internacional – FMI, o Banco Mundial e os meios de comunicação de massa.

Os transgênicos não têm por objetivo acabar com a fome, mas sim aumentar o megafaturamento de algumas multinacionais. Para se ter uma ordem de grandeza desse mercado, se o Brasil admitisse a soja transgênica da Monsanto, essa empresa poderia abraçar um mercado de sementes e herbicidas de 2 a 3 bilhões de dólares/ano.

Caso a Monsanto consiga impor sua lei no Brasil, 80% das sementes “industriais” de milho passarão a ser transgênicas e todos os cultivos de milho serão contaminados. Vinte e cinco por cento do milho nos EUA é transgênico, mas 75% de todo o milho cultivado está contaminado. As empresas transnacionais apostam em uma contaminação geral dos cultivos no mundo, numa estratégia criminosa para impor seus interesses.

4. Saídas: Resistência, Associação e Cooperação

Cinco pontos podem ser considerados como fundamentais para a luta contra a tirania do domínio das sementes:

Lutar contra a propriedade intelectual de qualquer forma de vida;

Considerar os recursos genéticos como um patrimônio da humanidade;

Lutar para que os governos decretem moratória na bioprospecção exploração, coleção e recoleção, transporte e modificação genética) enquanto não existirem mecanismos de proteção dos direitos de nossas comunidades camponesas e indígenas para prevenir e controlar a biopirataria;

Considerar a biodiversidade como a base para garantira soberania alimentar, como um direito fundamental e ásico dos povos, posições essas que não são negociáveis;

Resgatar, cada um segundo suas possibilidades, e pôr em prática o plantio e a distribuição em massa das sementes “crioulas” de e em todo o mundo, como uma forma de resistência popular e de superação do modelo agrícola dominante.

(Texto elaborado pela Via Campesina gaúcha e publicado

Em janeiro/2003, durante o Fórum Social Mundial-Porto Alegre/RS

Agrotóxico, transgênicos e o novo agronegócio

Matéria publicada no site da revista Caros Amigos, em 17 de setembro de 2010.

Agrotóxico, transgênicos e o novo agronegócio

Relação imbricada entre as empresas produtoras de sementes transgências e agrotóxicos domina o agronegócio brasileiro em um novo modelo que rende cifras bilionárias para poucos e prejuízos à saúde de muitos

Por Débora Prado

A concentração no campo é conhecida inimiga na luta pela justiça social no Brasil. No País do agronegócio – em que usineiro é herói e a reforma agrária é divida histórica centenária – 2,8% das propriedades rurais são latifúndios que dominam mais da metade de extensão territorial agricultável do país (56,7%), segundo os dados levantados pelo Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE) em 2006. Mas, a concentração no campo não se limita às propriedades. O oligopólio das fabricantes de sementes transgênicas e agrotóxicos se fortaleceu no Brasil nas últimas décadas, imprimindo um novo modelo de dominação que vai do campo para a cidade, rendendo cifras bilionárias para poucos e prejuízos à saúde de muitos.

Detentoras de grande capital, patentes, poderosos lobbies políticos e com um exército técnico e jurídico a sua disposição, essas companhias não conheceram a crise econômica. As vendas mundiais de agrotóxicos atingiram cerca de US$ 48 bilhões em 2009, o que significa que o faturamento das empresas deste setor é maior que o PIB de grande parte dos países no mundo. Entre 2000 e 2009, o mercado mundial de agrotóxicos cresceu 94%, ao passo que o brasileiro subiu 172%.

Somente no ano passado, foram registrados 2195 agrotóxicos no mercado brasileiro, que movimentou US$ 6,8 bilhões, de acordo com dados da Sindag, o sindicato das empresas. Os dados foram apresentados pela integrante da Gerência Geral de Toxicologia da Anvisa, Leticia Rodrigues da Silva, em um seminário nacional contra o uso dos agrotóxicos promovido pela Via Campesina, em parceria com a Fiocruz e a Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio na Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) do MST.

Apesar das altas cifras, este é um mercado caracterizado pelo oligopólio e por um elevado grau de concentração – 13 empresas multinacionais respondem por 90% do mercado, sendo as 6 maiores (Syngenta, Bayer, Basf, Monsanto, Dow Quemical e DuPont) – responsáveis por 68%.

Já poderosas no setor de agrotóxicos, estas multinacionais investiram ainda na compra de inúmeras fabricantes de sementes no Brasil a partir da década de 1990 e, recentemente, criaram o crédito direto ao produtor, ampliando seus braços de controle sobre a produção de nacional. Para Leticia, isto significa que “a relação do agronegócio e da indústria de agrotóxico não é só de compra e venda, mas de subordinação”.

Além dos impactos econômicos e sociais desta dominação, a disseminação em escala industrial dos produtos fabricados por estas empresas é uma questão ambiental e de saúde pública. “No ano passado, por exemplo, a Anvisa começou a fiscalizar as empresas produtoras e encontrou irregularidades em todas, como adulteração de produtos que estavam com formulação diferente da registrada e comercialização de vencidos”, relata Letícia. Somente na Dow Chemical, em junho deste ano, foram interditados mais de 500 mil litros de agrotóxicos e um funcionário foi conduzido à polícia por tentativa de omissão de produto.

A Anvisa colocou ainda 14 agentes ativos usados em agrotóxicos que se espalham pelas lavouras brasileiras em reavaliação – muitos deles inclusive proibidos em outros países como os EUA e alguns Europeus – sob suspeita de prejuízos à saúde. As empresas do setor entraram na justiça para impedir a revisão e até o momento quatro elementos foram banidos.

“O problema é que o prazo entre a entrada de um produto novo no mercado, a constatação dos seus efeitos e a retirada, no caso de ele ser prejudicial, é muito grande. E os danos à saúde ou mortes causadas pelos agrotóxicos geralmente são em longo prazo, então fica difícil provar o nexos de causalidade. Claro que há produtos em que se pode afirmar isto e é estes que queremos banir”, ressalta Letícia, complementando que “não há estudos em nenhum lugar do mundo sobre os efeitos da exposição à mistura de agrotóxicos, mesmo que seja em lavouras sucessivas”.

Para ela, o que está em cheque é a possibilidade da população decidir se quer ou não consumir agrotóxico. “Hoje é praticamente impossível comprar um alimento sem agrotóxico, porque mesmo aqueles que são produzidos sem mostram índices de contaminação, que está em toda cadeia alimentar, na água e até no ar”.

Com isso, em 2009, mais de um bilhão de litros de venenos foram jogados nas lavouras, de acordo com dados do Sindag. O Brasil ocupa o posto de liderança no consumo desses produtos e, segundo dados do Movimento de Pequenos agricultores, se dividida a quantidade total de agrotóxicos utilizados em 2009 pelo número de habitantes do País, cada pessoa consumiu em média 5,2 kg de agrotóxicos ao longo do ano.

Horacio Martins de Carvalho, engenheiro agrônomo, avalia que este é um um novo modelo produtivo econômico, político e cultural, em que a patente dos genes e os Organismos Geneticamente Modificados fazem parte das estratégias comerciais das empresas para vender pesticidas. “O consumo mundial de agrotóxicos determina e é determinado pela combinação do controle privado das patentes de OGM e das fusões das empresas da área da indústria química”, explica.

Os números corroboram com esta avaliação. A Monsanto, por exemplo, tem hoje 25% do mercado brasileiro de sementes de hortaliças, segundo dados levantados pelo professor. Já um levantamento feito Sérgio Porto, da Conab, mostra que somente no cultivo de soja, um dos flancos dos transgênicos no Brasil, o uso de herbicidas passou de 142,16 mil toneladas, em 2005, para 226,82 mil toneladas no ano passado, um aumento de 60%. O custeio agrícola seguiu a expansão do uso de herbicidas, passando de R$ 4,82 bilhões, em 2005, para R$ 8,24 bilhões no ano passado.

“Os dados comprovam que não se usa menos agrotóxicos, nem se gasta menos, com os transgênicos, como os produtores costumam dizer. Pelo contrário, o uso de herbicidas, fungicidas e inseticidas só aumentou no Brasil”, conclui Porto.

O modelo é altamente concentrado: das 149 milhões de toneladas de grãos na colheita deste ano, 80% é de milho e soja e outros 10% de arroz. Ou seja, apenas 3 produtos dominam a produção brasileira de grãos. Isto gera uma insegurança alimentar que pode penalizar toda sociedade. “São Paulo é o Estado com maior insegurança alimentar em termos de demanda e oferta, uma vez que a opção pela cana-de-açúcar leva o Estado a trazer de fora grande parte dos alimentos”, complementa Porto.

A concentração em poucos produtos é acompanhada de uma concentração regional na produção. “A transição para um novo modelo é crucial e para isso a pressão social é necessária. O debate sobre a alimentação saudável e o modo com se produz deve ser um elemento central na união das lutas no campo e na cidade”, destaca Porto.

Os limites do novo Censo Agropecuário (*)

Sáb, 27 de Fevereiro de 2010 04:14 Ciência

Nós do MEPR publicamos recentemente em nossa página matéria de denúncia sobre a capitulação em relação à luta pela terra propugnada pelo principal dirigente e figura pública do MST, João Pedro Stédile, em entrevista concedida em janeiro último ao jornal Zero Hora.

Publicamos agora texto do geógrafo Ariovaldo Umbelino, questionando o Censo Agropecuário de 2006, divulgado recentemente. O texto mostra como os técnicos do IBGE não recuam ante artifício algum para maquiar a realidade e ocultar a questão da concentração da terra. Importante também é a denúncia da enorme quantidade de terras griladas no nosso país, terras devolutas pertencentes à União e apropriadas pelo latifúndio (um terço do território nacional!). Isso mostra que quem secularmente invade terras no Brasil não são os camponeses, mas sim os bandidos latifundiários. Importante também é a defesa do conceito de campesinato, varrido dos estudos oficiais e, importante dizer, varrido do discurso dos chamados “movimentos sociais” dentre eles o MST, e a substituição desse conceito científico e associado à luta pela radical transformação social por um esquálido “agricultores familiares” ou “trabalhadores rurais”. Ora, basta perguntar: o que prevalece no campo do nosso país são proletários rurais, reivindicando melhores condições de trabalho, ou um numeroso campesinato reivindicando a posse da terra?

Naquela oportunidade demonstramos a tentativa feita pela direção do MST de eludir o único fato decisivamente importante, e inquestionável, no que diz respeito a qualquer análise que se faça com respeito à questão agrária no Brasil: nosso país segue tendo os maiores índices de concentração da terra em todo o mundo e, longe de ter sido superada, a base latifundiária de nossa economia permanece no fundamental inalterada. E também inalterado o enorme peso político do latifúndio em todas as esferas de poder no nosso país.

E falar em concentração da terra é falar em duas conseqüências fundamentais, umbilicalmente relacionadas:

Em primeiro lugar não existe latifúndio sem massa camponesa. Esta serve tanto como permanente reserva de mão-de-obra barata para a produção latifundiária como de produtora de gêneros alimentícios (uma vez que os chamados “pólos do agronegócio” servem sobretudo à produção de commodities destinadas ao mercado externo). E esta relação latifúndio-massa camponesa necessariamente vem acompanhada da opressão violenta dos segundos pelos primeiros, na preponderância no campo brasileiro de relações semifeudais que se expressam através de todo tipo de coação extra-econômica (da qual o exemplo mais evidente são os “grupos de segurança”, verdadeiros exércitos particulares que os latifundiários possuem em todo o Brasil) e também na manutenção de arcaicas relações de produção, como a que se verifica nas condições e relações de trabalho que predominam no campo brasileiro.

Em segundo lugar esse enorme peso econômico tem como conseqüência a manutenção de enorme poder político do latifúndio, que jamais saiu do centro do aparelho de Estado no Brasil. Basta ver o que são o Congresso Nacional, aonde inclusive o monopólio de imprensa reconhece a bancada ruralista como a que predomina naquela “casa” (de tolerância...), o judiciário que através da figura abjeta de seu presidente, Gilmar Mendes, tem feito uma verdadeira cruzada em defesa das “reintegrações de posse” contra os camponeses e o Executivo que, presidido pelo oportunista Luis Inácio, não apenas não tem dado um passo sequer na direção de qualquer “reforma agrária” como tem mesmo desatado intensa e feroz repressão contra o movimento camponês organizado. Por isso dizemos: o Estado brasileiro é um Estado burguês-latifundiário e esperar uma “reforma agrária” institucional, bem comportada, sem luta, vinda desse mesmo Estado é no mínimo ingenuidade e não raro a mais crassa traição.

Essa a base da luta pela terra no Brasil. Enquanto existir sistema latifundiário e campesinato haverá, queiram alguns ou não, a luta pela terra. Esse é um fato objetivo, inquestionável, e não reconhece-lo é colocar-se contra a roda da história. Os camponeses reconhecem cada vez mais a impossibilidade de esperar sua terra através do INCRA ou do governo federal. Sabem que, se o Estado não fez e não fará reforma agrária alguma, o caminho é tomar as terras na marra. Essa bandeira já empunhavam as Ligas Camponesas nas décadas de 50 e 60. Essa bandeira empunha hoje a Liga dos Camponeses Pobres: é a Revolução Agrária.

A publicação desse texto do professor Ariovaldo, dessa análise baseada em fatos irrefutáveis da realidade logo após a fala de Stédile, de que mudou a luta pela terra, tem para nós grande importância. A luta pela terra não só não deixou de estar no centro da vida política do país (e o berreiro da reação, que tanto assusta Stédile, é simplesmente prova disso) como ganha contornos cada vez mais radicalizados com a impossibilidade das direções governistas, particularmente a do MST, seguir enganando incautos. É necessário aos vastos setores que defendem a luta contra o latifúndio, que se solidarizam com a massa camponesa, aos estudantes, intelectuais, ao proletariado, seguir como nunca apoiando essa luta e compreender que se alguns setores capitulam dela isso não pode deixar de ser um revés transitório, que será certamente superado com o fortalecimento de novas direções porque, a despeito de todas as bravatas e regateios, a história está do lado dos camponeses.

(*) Trata-se do Censo Agropecuário de 2006, cujos resultados foram tornados públicos pelo IBGE em setembro de 2009.


Os limites do novo Censo Agropecuário:

Escrito por Ariovaldo Umbelino *

10 de fevereiro de 2010

O Estado brasileiro não tem controle algum sobre seu território, aliás, nunca teve. O Incra deveria fazer periodicamente o recadastramento dos imóveis, mas não faz. O último foi feito em 1992 e atualizado em 1998. Nem os órgãos públicos nem os cartórios de registro de imóveis, ou seja, ninguém neste país é capaz de informar a parte das terras ocupadas legalmente e ilegalmente, ou melhor, as griladas. Nem mesmo o Estado é capaz de informar o total das terras públicas devolutas ou não.

Nunca um censo foi realizado no Brasil com tanta tecnologia avançada disponível. Tudo foi feito para que os resultados viessem a público rapidamente. Projetou-se um censo a fim de ser instrumento para o país conhecer o campo e planejar seu futuro. Entretanto, junto com os instrumentos digitais de coleta de dados, vieram os erros. Erros grosseiros que levaram o IBGE a adiar a divulgação, inclusive dos resultados preliminares, que foram muito mais dados da produção agrícola e pecuária municipal do que resultado efetivos do Censo 2006.

A análise geral do Censo Agropecuário 2006 revela três questões principais. Pela primeira vez, o IBGE se deu ao trabalho de comparar seus dados àqueles do Incra e mostrar suas diferenças conceituais das unidades estatísticas fundantes: estabelecimentos e imóveis.

O censo apresentou dados relativos ao conjunto do território brasileiro em hectares: área territorial total do país: 851,4 milhões; área total ocupada pelos estabelecimentos: 330 milhões; área total das terras indígenas: 126 milhões; área total das unidades de conservação ambiental: 72,3 milhões; área com corpos d’água: 12 milhões; e área urbanizada: 2,1 milhões. Mas a conta não fechou, ou seja, ficaram sobrando 309 milhões de hectares.

A solução adotada pelos técnicos do IBGE foi denominar esses 36% da superfície do país de "área com outras ocupações". No entanto, se eles incluíram todas as possibilidades de ocupação de fato, ficou faltando as "terras públicas devolutas". É isto mesmo: mais de um terço da área do país está cercada, mas não pertence a quem cercou. Os "proprietários" não têm os documentos legais de propriedade destas terras. Por isso, essas terras são omitidas nos levantamentos estatísticos tanto do IBGE como do Incra.

A segunda questão envolve o volume especial sobre a denominada "agricultura familiar". Essa conceituação tem sua origem no neoliberalismo. Nasceu com a intenção de apagar da memória e da história o conceito de camponês e o campesinato como sujeito social revolucionário do século XX. A função política desse volume é induzir a análise do campo pela lógica neoliberal, que esconde a dimensão dos estabelecimentos e, portanto, os indicativos analíticos da concentrada estrutura fundiária do país. Seu alvo preferencial são os movimentos sócio-territoriais em luta pela terra. Visou assim, retirar o seu mais potente elemento revelador da desigual distribuição da terra no Brasil. Foi transferida para as estatísticas a opção ideológica feita pelo governo atual. Nada contra o estudo em si, pois ele é legitimo. A questão está em torná-lo um volume do Censo 2006. (Grifo Nosso).

A terceira questão sinaliza a incômoda destruição gradativa do único instrumento estatístico de série histórica longa, que o país dispõe para conhecer sua realidade agrária. Basta comparar o volume de 2006 com o de 1995/1996, para ver que os técnicos atuais do IBGE sequer zelaram pela herança deixada pelos seus antecessores.

Um censo é um instrumento estatístico, por isso tem que sempre ampliar as possibilidades de desagregação dos dados, e não o contrário. Os técnicos do IBGE trataram de esconder ao máximo possível os dados da estrutura fundiária, particularmente as variáveis por estratos de área total. Ampliaram o que é positivo, a estratificação dos minifúndios, mas zelosamente agregaram os dados dos grandes estabelecimentos escondendo os latifúndios.

Ou seja, os estratos de área maiores chegavam a até 100.000 hectares no censo de 1995/1996. Foi reduzido para 2.500 hectares e mais. Foi uma no cravo e outra na ferradura. Deixaram também de divulgar a produção de vários produtos agrícolas por estrato de área total. Assim, impediram que se pudessem fazer estudos segundo esse critério, que revela o caráter da propriedade privada da terra, exceto se os interessados resolverem comprar os dados.

Sempre dominou no campo brasileiro o princípio da ilegalidade da ocupação das terras públicas pelos latifundiários. São esses 309 milhões de hectares de terras públicas devolutas ou não que somados aos 120 milhões de hectares de terras improdutivas dos grandes imóveis indicadas no primeiro documento do 2º Plano Nacional de Reforma Agrária (2003) que os sem terras não se cansam de denunciar. É por isso que os latifundiários travam combate sem trégua com os sem terras. E a maior parte da mídia acompanha e faz eco, mas os dados demonstram que a história está do outro lado, do lado dos sem terras.

Agrotóxicos no Brasil

O uso dos agrotóxicos no Brasil e no mundo começou a ser intensificado a partir das décadas de 60 e 70, com a chamada revolução verde. A revolução verde foi um processo de mudança da política agrícola no país implementado a partir da segunda guerra mundial. Com um falso discurso de modernização do campo, esse processo incentivou a prática de monocultivos, o uso de sementes geneticamente modificadas, a forte mecanização do campo e o uso dos pacotes agroquímicos. Atualmente, o Brasil possui mais de 400 tipos de agrotóxicos registrados.

o soldado e o agricultor

Quase toda a tecnologia que surgiu na revolução verde, desde as máquinas aos agrotóxicos, foi proveniente de adaptações de pesquisas e equipamentos utilizados na guerra.

A produção e a comercialização dos agrovenenos no Brasil e no mundo se concentra na mão de seis grandes empresas transnacionais, que controlam mais de 80% do mercado de venenos. São elas: Monsanto, Syngenta, Bayer, Dupont, Dow e Basf.


Além controlar a fabricação dos agrotóxicos, essas empresas também controlam a produção e comercialização de sementes, gerando um ciclo vicioso de consumo. Desse modo, o agricultor que passa a utilizar sementes transgênicas e venenos será sempre dependente dessas empresas.

Mais agrotóxicos, menos alimentos

No Brasil, enquanto aumentam os índices de produtividade agrícola, contraditoriamente, aumentam também os índices de insegurança alimentar.

Segundo dados do IBGE, 72,2 milhões de brasileiros (aproximadamente 40% da população) encontram-se em situação de insegurança alimentar. Isso acontece porque o modelo de agricultura brasileiro não está voltado para a produção de alimentos, e sim para o agronegócio. Cada vez mais aumentam no Brasil os monocultivos de cana, soja e eucalipto, mas nenhum desses produtos vai para a mesa do povo brasileiro. Quanto maior o uso de venenos e de sementes transgênicas, menor a produção de alimentos.

As culturas que mais utilizam agrotóxicos no país são justamente aquelas produzidas no modelo do agronegócio, cultivadas em grandes áreas de monocultivo e voltadas para a exportação, como é o caso da soja, que é responsável por 51% do volume total de agrotóxicos comercializados no país.

fonte; mpacontraagrotoxicos.wordpress.com/agrotoxicos-no-brasil/

"Venenos agrícolas matam"

Sex, 21 de Janeiro de 2011 17:22

Em entrevista à IHU On-Line, o pesquisador e engenheiro agrônomo Julio Cesar Rech Anhaia, destaca a importância de se abrir o debate sobre o uso dos transgênicos e agrotóxicos. “Não temos controle sobre o uso dos transgênicos. Quem tem o controle são as multinacionais que hoje estão posando de 'donas' das sementes”, afirma.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são os principais venenos agrícolas utilizados no Rio Grande do Sul, atualmente?

Julio Cesar Rech Anhaia – O que é mais usado é o herbicida. Depois vêm os inseticidas e os fungicidas, nesta ordem de utilização.

IHU On-Line – Quais são os mais problemáticos?

Julio Cesar Rech Anhaia – Lamentavelmente, o que está faltando é responsabilidade dos próprios colegas. Não podemos generalizar, mas uma boa parte do pessoal que trabalha nessa atividade, de técnicos de nível médio a profissionais de nível superior, não tem dado a devida atenção ao fato de que muito veneno está sendo utilizado. Eles não observam as normas técnicas, a umidade, a temperatura, o vento. Nos campos sulinos ou no bioma pampa nós temos quase que semanalmente denúncias sobre o uso abusivo de agrotóxicos que causam inúmeros acidentes. E esses acidentes ocorrem principalmente com os herbicidas e acabam dizimando as plantações de frutíferas.

O nosso pequeno produtor acaba sendo desestimulado em função dessas perdas, o que acaba causando um problema que influencia até no aumento do êxodo rural. Desde as crianças e os jovens até os educadores e os formadores de opinião, todos devem fazer uma reflexão sobre a maneira como nós estamos tratando a nossa qualidade de vida e a biodiversidade. A situação é muito preocupante. Se você procurar informação sobre os atendimentos do pronto-socorro aqui na região, não conseguirá obter dado algum, porque não há um interesse em notificar acidentes em decorrência do uso de agrotóxicos e, por consequência, que se tome uma atitude em relação a isso. E não é só a cidade de Alegrete, onde vivo, que está passando por esse tipo de problema. Cidades como Uruguaiana, São Borja, Barra do Guaraí, Itaqui e Maçambará também estão sofrendo com problemas causados pelo uso de agrotóxicos de forma intensa.

IHU On-Line – Quase 100% do milho colhido no RS neste ano é transgênico. O que isso significa para a agricultura do estado?

Julio Cesar Rech Anhaia – É um risco terrível. Canguçu, por exemplo, é o berço da agricultura familiar, inclusive lá existem trabalhos fortes no sentido de se produzir produtos que venham da pequena atividade agrícola. Mas já está passando por problemas em decorrência do uso de sementes geneticamente modificadas. Não temos controle sobre o uso dos transgênicos. Quem tem o controle são as multinacionais que hoje estão posando de “donas” das sementes. Com isso, nosso pequeno produtor vai ficar a mercê disso aí, porque as nossas sementes nativas propriamente ditas acabam sendo contaminadas e, por conseguinte, deixam de ser nativas.

IHU On-Line – Num artigo, o senhor diz que a difusão do uso de venenos agrícolas, para o controle de pragas e plantas invasoras na agricultura brasileira, foi favorecida pelo sistema de crédito rural. O sistema de crédito precisa mudar para que possamos mudar a cultura do uso dos venenos nas plantações?

Julio Cesar Rech Anhaia – Com certeza. As instituições financeiras estão cobrando questões e documentações extras do responsável técnico para que o crédito rural possa ser dado, embora nós tenhamos construído um manual de crédito rural. Há bem pouco tempo, no pacote do crédito rural era exigido, embora o nosso produtor não precisasse utilizar venenos, que obrigatoriamente os venenos precisavam ser comprados para que fosse usar ou não na sua atividade. Isso tem que ser mudado, tem ser discutido, realmente com os produtores, as entidades, as cooperativas porque, muitas vezes, essas normas regulamentadoras acabam vindo de cima para baixo e o pequeno produtor fica sendo o mais prejudicado. O crédito, inclusive, muitas vezes é negado porque o produtor não quer se submeter a esse tipo de condição que é exigido.

IHU On-Line – Quais as consequências para ambientes como o aquífero Guarani em função do uso de venenos agrícolas hoje no RS?

Julio Cesar Rech Anhaia – Alegrete fica localizada em cima do aquífero Guarani e do aquífero Botucatu. Essa é denominada uma zona de recarga. E nessa área nós temos monocultura do arroz que usa muito veneno. Além disso, nós temos a monocultura do eucalipto que já está causando um desequilíbrio ambiental muito grande. É necessário que voltem a ocorrer pesquisas que meçam a influência do uso dos agrotóxicos nesses aquíferos.

Já percebemos, através de pesquisa, que a Bacia Hidrográfica do rio Santa Maria assim como a do rio Uruguai, em função do uso intenso de veneno nas lavouras e a destinação inadequada das embalagens de agrotóxicos que são jogadas na beirada de recursos hídricos, acabam gerando intoxicações e degradação de toda a nossa biodiversidade. Sabemos que a luta contra as transnacionais é terrível e, muitas vezes, desigual, mas não podemos cruzar os braços. Nós seguimos lutando através da educação, da conscientização, da percepção das pessoas e alertando que estamos acabando com a vida quando utilizamos venenos nas plantações. A questão do agrotóxico ela deve continuar sendo debatida, para que nós tenhamos uma reversão. As consequências estão aí.

Julio Cesar Rech Anhaia é engenheiro agrônomo. Trabalha na Secretaria Municipal do Meio Ambiente de Alegrete, no Rio Grande do Sul, e é tutor do curso de Agricultura no Instituto Federal Farroupilha.

fonte cpt nacional

NÃO É MAIS NATAL!

Por: Cláudia Muniz do Amaral

Há pouco tempo era Natal, a solidariedade e a fraternidade eram as palavras repetidas e a meta de todos os compromissos assumidos. O Natal é, talvez, a festa mais importante para os cristãos, pelo seu significado, o momento em que o verbo se fez carne e Jesus veio ao mundo para nos salvar e anunciar a boa nova.

A construção de um mundo melhor passa necessariamente por uma mudança do ser humano, pela valorização de princípios como fraternidade e solidariedade, que ultrapassam a normatividade de um Estado de Direito, princípios que o Direito não registra porque o antecede.

Os valores como ética, lealdade, honestidade precisam ser resgatados com urgência porque a nossa sociedade está fadada ao fracasso, não porque o sistema capitalista demonstra a sua incapacidade de atender aos anseios de todos, mas porque nenhum sistema se firmará com um ser humano corrompido e egoísta.

Assiste-se com profunda tristeza os acontecimentos no Rio de Janeiro e em São Paulo e, nestes momentos, como aconteceu aqui em Alagoas, não faltam corações abertos, demonstrações inequívocas de solidariedade. Entretanto, lamentavelmente, constatamos estarrecidos a ausência de planejamento do Poder Público e com muita dor vemos os desvios a céu aberto e os oportunistas de plantão que estão sempre prontos a tirar proveito da miséria humana.

No tempo em que o Brasil chora pelo sofrimento dos nossos irmãos do Sudeste, e de mãos dadas demonstra todo tipo de solidariedade, fecha-se os olhos para os irmãos “sem terra”, que são despejados como água das terras que cultivaram por anos a fio, criaram animais e enraizaram vidas, em nome de Justiça. Que Justiça é essa? Aprendi, desde cedo nos bancos da faculdade que a Justiça é cega, mas por muitas vezes, desconfia-se que seja caolha.

Em nome da legalidade, se coloca na marginalidade irmãos, se engrossa a fileira de desabrigados, analfabetos e doentes. Este é um trabalho incansável do Estado para a manutenção dos nossos “altos índices” de IDH, mas poucos preocupam-se com isso, afinal não é mais Natal.

Não se faz mais necessário lembrar o mandamento “Amai ao próximo como a ti mesmo”, não há que se cumprir o primeiro artigo da Lei Maior, o compromisso com cidadania, dignidade da pessoa humana são normas sem eficácia, feitas para não serem cumpridas. Letra morta na Constituição! Legalidade é a interpretação literal de cada dispositivo e nada mais importa, ainda que estejamos construindo um mundo de miseráveis e colocando o nosso tijolinho de cada dia para o aumento da criminalidade, contanto que nos sobre dinheiro para comprarmos as nossas grades.

* É Procuradora de Estado, Vice-Presidente do Conselho de Segurança do Estado de Alagoas e Coordenadora do Curso de Direito da SEUNE.

Fontetp://cptalagoas.blogspot.com/

“O PÃO QUE O ESTADO AMASSOU”


Por: Carlos Lima (*)

O ano de 2011 para as famílias acampadas começou de forma impactante. Não passou nem o primeiro mês do ano o Juiz Agrário, Airton Tenório e o Governo de Alagoas – no segundo mandato de Teotônio Vilela, com um giro ainda mais à direita – estão com disposição de leão.

Eles já desalojaram 123 famílias, destruindo moradias e alimentos, em um Estado de esfomeados. Já foram destruídos, somente em janeiro, 63 hectares de alimentos nos acampamentos acompanhados pela Pastoral da Terra em Messias, zona da mata alagoana, nos acampamentos: Pachamama (40 famílias e 05 hectares de alimentos destruídos); Baixa Funda (26 famílias e 10 hectares de alimentos); Flor do Bosque 2 (18 famílias e 33 hectares destruídos); e Gitirana (39 famílias e 15 hectares de alimentos destruídos). No caso do acampamento Gitirana, este merece um comentário à parte. Em visita ao imóvel, o juiz disse a este coordenador e aos acampados que área era improdutiva e ele não daria reintegração de posse, mas concedeu.

A Vara Agrária e Governo estão utilizando a estratégia de promover tamanha violência no início do ano, enquanto ainda reina o clima de comemorações ou férias, as reintegrações estão acontecendo numa velocidade assustadora (quem dera a reforma agrária caminhasse no mesmo ritmo), numa clara intenção de passar o rolo compressor sem que haja qualquer tipo de reação da sociedade.

Na próxima quinta-feira, 20 de janeiro, está agendada a reintegração de posse da fazenda Bota Velha, em Murici, cidade arrasada pelas chuvas que caíram em junho de 2010, na qual centenas de famílias estão desabrigadas, onde 489 estão morando de forma indigna em barracas, esquecidas pelo poder público. Na tragédia de junho os acampamentos e assentamentos da região doaram muitos alimentos aos atingidos. O Estado, que ainda não construiu uma casa sequer para as vítimas das enchentes, pretende ampliar para 589 o número de barracas.

Numa reintegração como a do acampamento Bota Velha – onde as 100 famílias estão há 9 anos produzindo alimentos e construindo vida em comunidade, com escola, capela, catequese e energia – não se trata apenas de um despejo, mas de colocar uma “pá de cal” na vida de muita gente. Gente jovem, gente idosa, gente criança, seres humanos, filhos desta pátria, que enxergam na reforma agrária a possibilidade de voltar a viver, de construir futuros, de buscar horizontes.

As “autoridades” que vão empurrar essas famílias para as periferias de Murici e Maceió, entregando-as como reféns do tráfico e da marginalização, decidem a vida das pessoas, a partir dos seus mundos, de suas castas, com salários robustos, dos seus compromissos de classe.

Caso o despejo da Bota Velha seja concretizado, vamos chegar à soma de 223 famílias despejadas e 95 hectares de alimentos destruídos. Considerando que o despejo pode acontecer no dia 20 de janeiro, vamos ter uma média de 11,15 famílias desalojadas por dia e 4,75 hectares de alimentos destruídos por dia. Fica difícil não fazer uma relação direta com 56% da população consideradas pelo senso do IBGE como extremamente pobres.

A vida, a dignidade da pessoa humana deve prevalecer diante de injustiças centenárias. O Estado criado para regular a sociedade não deve continuar apoiando as mesmas elites escravocratas de sempre, tem que incluir as famílias e garantir terra, moradia e renda. Do contrário, estamos próximos da barbárie.

*Coordenador da CPT e formado em História pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL)

Educação do Campo: notas para uma análise de percurso

Roseli Salete Caldart

“O sentido do nosso movimento não é anterior à nossa intervenção: é instaurado por nós, dentro dos limites que nos são impostos pelo quadro em que nos inserimos”.
(Leandro Konder, 2003)

Discutir sobre a Educação do Campo hoje, e buscando ser fiel aos seus objetivos de origem, nos exige um olhar de totalidade, em perspectiva, com uma preocupação metodológica, sobre como interpretá-la, combinada a uma preocupação política, de balanço do percurso e de compreensão das tendências de futuro para poder atuar sobre elas.
É momento de perguntar, passados 10 anos deste “batismo”, que objeto de estudo, de práticas, de política é este que atende pelo nome de “Educação do Campo”? Tratamos de que realidade e em que contexto ou sobre “que movimento e em que quadro”? Por que a Educação do Campo já se configura como um fenômeno da realidade brasileira que exige tomada de posição, prática e teórica? Por que tem causado desconforto em segmentos politicamente diferentes ou mesmo contrapostos? Qual o movimento do real provocado ou expresso pela Educação do Campo que incomoda e já instiga debates sobre sua significação: que tipo de práticas e de políticas podem mesmo ser designadas como tal? Por que Educação do Campo e não Educação Rural? E, afinal, qual o balanço deste movimento da realidade? E qual o significado histórico que já é possível apreender da emergência da Educação do Campo no contexto da educação brasileira contemporânea e das lutas dos trabalhadores, do campo e da cidade, por uma educação emancipatória e, mais amplamente, pela superação das relações sociais capitalistas?
Sem dúvida nossa retrovisão histórica é ainda muito pequena para dar conta de uma análise mais profunda do processo de construção prático-teórica da Educação do Campo. Mas a necessidade de tomada de posição imediata e de um pensamento que ajude a orientar uma intervenção política na realidade de que trata nos exige pelo menos uma aproximação analítica nesta perspectiva. Vivemos em um tempo de urgências: densas e radicais como são as questões da vida concreta, de pessoas concretas, especialmente as questões de “vida por um fio”, nos seus vários sentidos. E não estamos fazendo esta discussão sobre o percurso da Educação do Campo em um momento qualquer, mas exatamente no momento onde estas urgências eclodem em um cenário de crise estrutural da sociedade capitalista, o que se de um lado dificulta ainda mais uma análise objetiva, de outro nos instiga a balanços projetivos que possam ajudar a reorganizar nossa atuação política diante de velhos e novos cenários.
Podemos dizer sobre a Educação do Campo, parafraseando Emir Sader (prefácio a Meszáros, 2005) que sua natureza e seu destino estão profundamente ligados ao destino do trabalho no campo e, conseqüentemente, ao destino das lutas sociais dos trabalhadores e da solução dos embates de projetos que constituem a dinâmica atual do campo brasileiro, da sociedade brasileira, do mundo sob a égide do capitalismo em que vivemos. E ainda que “muitos não queiram”, esta realidade exige posição (teórica sim, mas sobretudo prática, política) de todos os que hoje afirmam trabalhar em nome da Educação do Campo.
Busco desenvolver este texto na perspectiva de construção de uma chave metodológica para interpretação do percurso e da situação atual da Educação do Campo, orientando-me por dois pressupostos teóricos bem antigos, do nosso velho camarada Marx: o primeiro é o de buscar “compreender o ‘movimento’ e os ‘aspectos contraditórios’ do real”, muito mais do que “afirmar e repetir obstinadamente princípios abstratos” (Lefebvre, 1981), o que me parece ainda mais importante se o que pretendemos é justamente tomar posição diante de questões relacionadas à transformação da realidade. E o segundo é o da crítica como perspectiva metodológica ou como guia da interpretação teórica. Crítica aqui não no sentido simplificado de denúncia de uma determinada situação, mas sim de leitura rigorosa do atual estado de coisas, ou do movimento real de sua transformação.
O momento me parece propício para retomada destes pressupostos, tanto pelo embate geral de idéias ou de referenciais de interpretação da realidade que tende a ficar mais forte neste período de crise, como pela particularidade da situação atual da Educação do Campo. Há hoje uma diversidade de sujeitos sociais que se colocam como protagonistas da Educação do Campo, nem sempre orientados pelos mesmos objetivos e por concepções consonantes de educação e de campo, o que exige uma análise mais rigorosa dos rumos que estas ações sinalizam.
De outro lado, começam a surgir, especialmente no mundo acadêmico, algumas interpretações sobre o fenômeno da Educação do Campo, que têm ficado excessivamente centradas nos discursos de determinados sujeitos, priorizando a discussão lógica do uso ou da ausência de conceitos ou de categorias teóricas, buscando identificar as contradições no plano das idéias ou, ainda mais restritamente, no plano dos textos produzidos com esta identificação de Educação do Campo. Estes exercícios analíticos são importantes, desde que não se descolem da materialidade objetiva dos sujeitos, humanos e coletivos, que constituíram e fazem no dia a dia a luta pela educação da classe trabalhadora do campo. Existem sim tensões de concepções teóricas entre os sujeitos hoje envolvidos com a Educação do Campo e é importante apreendê-las, discuti-las, mas não podemos perder de vista que os parâmetros do debate das idéias devem ser dados pela análise do movimento da realidade concreta, sob pena de não participarem dele ou, pior, ajudarem a fortalecer posições políticas conservadoras, sobre o campo e sobre a educação dos trabalhadores.
Em síntese o que gostaria de defender/reafirmar é a necessidade e a importância, política, teórica, de compreender este fenômeno chamado de Educação do Campo em sua historicidade, o que implica em buscar apreender as contradições e tensões que estão na realidade que a produziu e que a move, e que ela ajuda a produzir e mover; que estão no “estado da coisa”, afinal, e não apenas nas idéias ou entre idéias sobre o que dela se diz.
Entendo que uma das características constitutivas da Educação do Campo é a de se mover desde o início sobre um “fio de navalha”, que somente se consegue compreender pela análise das contradições reais em que está envolvida e que, nunca é demais repetir, não são as contradições do território estrito da pedagogia, mas da luta de classes, particularmente de como se desenvolve hoje no campo brasileiro, em todas as dimensões de sua realidade.
Este “fio de navalha” precisa ser analisado, pois, no terreno das tensões e contradições e não das antinomias, estas últimas muito mais próprias ao mundo das idéias do que ao plano da realidade concreta, das lutas pela vida real em uma sociedade como a nossa: sim! a Educação do Campo toma posição, age, desde uma particularidade e não abandona a perspectiva da universalidade, mas disputa sua inclusão nela (seja na discussão da educação ou de projeto de sociedade). Sim! ela nasce da “experiência de classe” de camponeses organizados em Movimentos Sociais e envolve diferentes sujeitos, às vezes com diferentes posições de classe. Sim! a Educação do Campo inicia sua atuação desde a radicalidade pedagógica destes Movimentos Sociais e entra no terreno movediço das políticas públicas, da relação com um Estado comprometido com um projeto de sociedade que ela combate, se coerente for com sua materialidade e vínculo de classe de origem. Sim! a Educação do Campo tem se centrado na escola e luta para que a concepção de educação que oriente suas práticas se descentre da escola, não fique refém de sua lógica constitutiva, exatamente para poder ir bem além dela enquanto projeto educativo. E uma vez mais, sim! a Educação do Campo se coloca em luta pelo acesso dos trabalhadores ao conhecimento produzido na sociedade e ao mesmo tempo problematiza, faz a crítica ao modo de conhecimento dominante e à hierarquização epistemológica própria desta sociedade que deslegitima os protagonistas originários da Educação do Campo como produtores de conhecimento e que resiste a construir referências próprias para a solução de problemas de uma outra lógica de produção e de trabalho que não seja a do trabalho produtivo para o capital.
Neste texto busco exercitar essa perspectiva metodológica de compreender o movimento real da Educação do Campo, discutindo-o através de três questões que me parecem importantes na constituição dessa análise, ainda que aqui as aborde sem a pretensão de esgotá-las nem de já estar dando-lhes o tratamento teórico necessário. A primeira questão diz respeito à constituição originária, material, prática da Educação do Campo. A segunda trata de apreender algumas tensões e contradições principais do seu percurso e a terceira, pensando que é preciso incidir nos rumos da ação política com a urgência que nosso tempo nos coloca, se relaciona ao esforço de identificar alguns impasses e desafios do momento atual da Educação do Campo.
Na seqüência algumas notas sobre cada uma das três questões, no intuito principal de provocar um debate que nos dê indicações para uma construção mais coletiva desta chave de leitura.

Sobre a constituição originária da Educação do Campo
Ainda não fizemos uma narrativa escrita e refletida dessa história com mais rigor de detalhes (desafio de pesquisa). Há registros esparsos, fragmentados. E já há versões que alteram seus sujeitos principais, deslocando o protagonismo dos Movimentos Sociais, dos camponeses, colocando a Educação do Campo como um continuum do que na história da educação brasileira se entende por educação rural ou para o meio rural. Nestas notas destaco algumas idéias-força para nosso debate de interpretação da constituição de origem da Educação do Campo:

A Educação do Campo como Crítica
A Educação do Campo nasceu como crítica à realidade da educação brasileira, particularmente à situação educacional do povo brasileiro que trabalha e vive no/do campo.
Esta crítica nunca foi à educação em si mesma porque seu objeto é a realidade dos trabalhadores do campo, o que necessariamente a remete ao trabalho e ao embate entre projetos de campo que têm conseqüências sobre a realidade educacional e o projeto de país. Ou seja, precisamos considerar na análise que há uma perspectiva de totalidade na constituição originária da Educação do Campo.
E tratou-se primeiro de uma crítica prática: lutas sociais pelo direito à educação, configuradas desde a realidade da luta pela terra, pelo trabalho, pela igualdade social, por condições de uma vida digna de seres humanos no lugar em que ela aconteça. É fundamental considerar para compreensão da constituição histórica da Educação do Campo o seu vínculo de origem com as lutas por educação nas áreas de Reforma Agrária e como, especialmente neste vínculo, a Educação do Campo não nasceu como uma crítica apenas de denúncia: já surgiu como contraponto de práticas, construção de alternativas, de políticas, ou seja, como crítica projetiva de transformações.
Uma crítica prática que se fez teórica ou se constituiu também como confronto de idéias, de concepções, quando pelo “batismo” (nome) assumiu o contraponto: Educação do Campo não é Educação Rural, com todas as implicações e desdobramentos disso em relação a paradigmas que não dizem respeito e nem se definem somente no âmbito da educação.
A Educação do Campo surgiu em um determinado momento e contexto histórico e não pode ser compreendida em si mesma, ou apenas desde o mundo da educação ou desde os parâmetros teóricos da pedagogia. Ela é um movimento real de combate ao atual estado de coisas: movimento prático, de objetivos ou fins práticos, de ferramentas práticas, que expressa e produz concepções teóricas, críticas a determinadas visões de educação, de política de educação, de projetos de campo e de país, mas que são interpretações da realidade construídas em vista de orientar ações/lutas concretas.
É então desde esse parâmetro que a Educação do Campo deve ser analisada e não como se fosse um ideal ou um ideário político-pedagógico a ser implantado ou ao qual a realidade da educação deve se sujeitar. Talvez isso incomode a alguns: a Educação do Campo não é uma proposta de educação. Mas enquanto crítica da educação em uma realidade historicamente determinada ela afirma e luta por uma concepção de educação (e de campo).
Para analisar um fenômeno que se constitui como uma crítica material a um determinado estado de coisas, nada mais próprio, pois, do que buscarmos construir uma crítica de perspectiva materialista, o que inclui uma exigência de análise objetiva: qual o balanço crítico que fazemos da realidade educacional das famílias trabalhadoras do campo, passados dez anos deste movimento de lutas e de práticas de Educação do Campo? Esta análise pode também ser desdobrada nas questões específicas sobre as quais a crítica da Educação do Campo tem se voltado: que crítica tem sido afirmada no debate da Educação do Campo sobre a formação de educadores, sobre a educação profissional, sobre o desenho pedagógico das escolas do campo, sobre os objetivos e conteúdos da educação dos camponeses,...? Até que ponto as questões da realidade da educação dos camponeses, dos trabalhadores do campo, têm efetivamente pautado o debate da Educação do Campo entre seus principais sujeitos: Movimentos Sociais, Governos e Instituições Educacionais (especialmente as Universidades)?

Os Movimentos Sociais como protagonistas da Educação do Campo
Os protagonistas do processo de criação da Educação do Campo são os movimentos sociais camponeses em “estado de luta”, com destaque aos movimentos sociais de luta pela Reforma Agrária e particularmente ao MST.
O vínculo de origem da Educação do Campo é com os trabalhadores “pobres do campo”, trabalhadores sem-terra, sem trabalho, mas primeiro com aqueles já dispostos a reagir, a lutar, a se organizar contra “o estado da coisa”, para aos poucos buscar ampliar o olhar para o conjunto dos trabalhadores do campo.
Talvez esta seja a marca mais incômoda da Educação do Campo (inclusive para certas ortodoxias de esquerda) e sua grande novidade histórica: os sujeitos que põe em cena como construtores de uma política de educação e de uma reflexão pedagógica. É como se ouvíssemos de diferentes lugares políticos interpelações como as seguintes (ainda que nem sempre ditas nestes termos):
“Como assim desgarrados da terra”, “como assim levantados do chão” exigindo direitos, cobrando políticas específicas, discutindo educação, produzindo conhecimento? Puxando a frente das lutas, buscando transformação social? Então os camponeses também querem estudar? E pretendem conceber sua escola, seus cursos? Discutir com professores de Universidade?
“Só podem ser baderneiros, bandidos, terroristas...”
“Mas alguém já não disse que camponeses são sempre reacionários e não são capazes de se organizar e agir como classe?”
E o proletariado, a classe operária, os partidos políticos que deveriam lhes dar direção? Como ousam agir politicamente em nome da classe trabalhadora?”
Talvez seja este protagonismo que o percurso da Educação do Campo, feito desde as condições objetivas do desenvolvimento histórico concreto, questiona/tensiona e que tantos buscam deslocar, ainda que com objetivos em tese politicamente contrários: deslocar dos movimentos sociais, dos trabalhadores, dos camponeses, dos oprimidos...
Na sua origem, o “do” da Educação do Campo tem a ver com esse protagonismo: não é “para” e nem mesmo “com”: é dos trabalhadores, educação do campo, dos camponeses, pedagogia do oprimido... Um do que não é dado, mas que precisa ser construído pelo processo de formação dos sujeitos coletivos, sujeitos que lutam para tomar parte da dinâmica social, para se constituir como sujeitos políticos, capazes de influir na agenda política da sociedade. Mas que representa, nos limites “impostos pelo quadro em que se insere”, a emergência efetiva de novos educadores, interrogadores da educação, da sociedade, construtores (pela luta/pressão) de políticas, pensadores da pedagogia, sujeitos de práticas.
Do ponto de vista metodológico e de balanço político é importante não perder a questão que nos pode ajudar numa análise em perspectiva: o que já houve de semelhante na história da educação brasileira e o que isso projeta em relação às tendências da educação do futuro? E para a análise do momento atual é preciso perguntar sobre as tendências de avanço ou de recuo do protagonismo dos Movimentos Sociais no mover-se da Educação do Campo hoje.


A Educação do Campo continua uma tradição pedagógica emancipatória
A Educação do Campo, fundamentalmente pela práxis pedagógica dos Movimentos Sociais, continua e pode ajudar a revigorar a tradição de uma educação emancipatória, retomando questões antigas e formulando novas interrogações à política educacional e à teoria pedagógica. E faz isso, diga-se novamente, menos pelos ideais pedagógicos difundidos pelos seus diferentes sujeitos e mais pelas tensões/contradições que explicita/enfrenta no seu movimento de crítica material ao atual estado de coisas.
A Educação do Campo retoma a discussão e a prática de dimensões ou matrizes de formação humana que historicamente constituíram as bases, os pilares da pedagogia moderna mais radicalmente emancipatória, de base socialista e popular e de referencial teórico marxista, trazendo de volta o sentido de uma “modernidade da libertação” (Wallerstein, 2002). Refiro-me como pilares ao vínculo entre educação e trabalho, (não como “preparação para” da pedagogia liberal, mas como “formação desde” da pedagogia socialista), à centralidade dada à relação entre educação e produção (“nos mesmos processos que produzimos nos produzimos como ser humano”), ao vínculo entre educação e cultura, educação e valores éticos; entre conhecimento e emancipação intelectual, social, política (conscientização). Trata-se, afinal, de recolocar para discussão da pedagogia a concepção da práxis como princípio educativo, no sentido de constituidora fundamental do ser humano (Marx).
E esta retomada vem exatamente da exigência do pensar a especificidade: considerar a realidade do campo na construção de políticas públicas e de pedagogia significa considerar os sujeitos da educação e considerar a prática social que forma estes sujeitos como seres humanos e como sujeitos coletivos. E não pretender que a educação/a pedagogia valha e se explique por e em si mesma.
Uma retomada que é também a recuperação de uma visão mais alargada de educação, algo que já aparece como tendência de muitas práticas e reflexões neste novo século: não confundir educação com escola nem absolutizar a educação escolar, como fez no discurso a pedagogia moderna liberal, para que o capital pudesse “educar” mais livremente as pessoas em outras esferas (uma armadilha em que muitos pedagogos de esquerda também caíram). É preciso pensar a escola sim, e com prioridade, mas sempre em perspectiva, para que se possa transformá-la profundamente, na direção de um projeto educativo vinculado a práticas sociais emancipatórias mais radicais.
Parece, aliás, que essa relação da Educação do Campo com a escola incomoda a alguns: nasceu lutando por escolas e escolas públicas (através do MST fazendo a luta por escolas nos acampamentos e assentamentos), continua centrada nisso, e ao mesmo tempo nasceu, desde a radicalidade da Pedagogia dos Movimentos Sociais, afirmando que educação é mais do que escola..., vinculando-se a lutas sociais por uma humanização mais plena: luta pela terra, pelo trabalho, pela desalienação do trabalho, a favor da democratização do acesso à cultura e à sua produção, pela participação política, pela defesa do meio ambiente,...
Desde os Movimentos Sociais a Educação do Campo nasceu trazendo novas (e velhas) interrogações à política educacional e à teoria pedagógica próprias dos tempos “modernos” (isso também incomoda a uns quantos).
Do ponto de vista da política de acesso à educação talvez o que mais incomode é a idéia do direito coletivo versus a idéia liberal do direito individual. É só pensar na reação que hoje se manifesta em relação às turmas do PRONERA em diversos setores da sociedade. O coletivo pressiona mais o sistema e sendo este coletivo originário dos pobres do campo volta a reação: “como assim?” E o direito coletivo interroga com mais força o conteúdo das políticas e da própria educação. Não é qualquer acesso. Não é qualquer formação. Ou seja, a Educação do Campo ao tratar de uma especificidade, e pelo jeito de fazê-lo, configura-se como uma crítica à forma e ao conteúdo do que se entende ser uma política pública e ao modo de construí-la em uma sociedade cindida socialmente como a nossa.
Do ponto de vista da teoria pedagógica há interrogações importantes que merecem ser aqui ao menos brevemente indicadas:
1ª) Os Movimentos Sociais trouxeram a discussão sobre a sua dimensão educativa. Os Movimentos Sociais Camponeses vêm formulando a reflexão sobre uma “Pedagogia do Movimento”, afirmando a luta social e a organização coletiva (constituidoras do Movimento Social) como matrizes formadoras. Essa formulação em boa medida já está em Marx na sua concepção de práxis ao mesmo tempo como produção e transformação do mundo (que tem no trabalho sua centralidade, mas que vai além dele), porém não tinha sido desdobrada/elaborada pela área da pedagogia (que se centrou mais na reflexão sobre o trabalho e a cultura), a não ser indiretamente, com outra nuance, em Paulo Freire, na sua Pedagogia do Oprimido.
Que implicações esta experiência formativa de quem participa de Movimentos Sociais traz no pensar uma pedagogia emancipatória e com objetivos de formar os sujeitos da transformação social? Que lições de pedagogia é possível apreender da vivência em processos de luta social e organização coletiva para diferentes práticas pedagógicas, inclusive aquelas desenvolvidas na escola?
2ª) O vínculo entre educação e trabalho, central na concepção de uma educação emancipatória, e na própria concepção da práxis como princípio educativo, quando se desdobrou na reflexão específica sobre uma pedagogia do trabalho, teve como objeto central de reflexão teórica o trabalho na sua forma urbano-industrial (Gramsci, Makarenko, Pistrak,...). Da mesma forma hoje, quando se reflete sobre integração entre educação básica e formação específica para o trabalho, o olhar se coloca para a lógica do trabalho que predomina nas cidades.
A Educação do Campo ao retomar esta reflexão sobre a relação entre educação e trabalho se pergunta e interroga a teoria pedagógica: o que significa pensar a relação educação e trabalho, e fundamentalmente os processos de formação humana ou de produção do ser humano, tendo por base os processos produtivos e as formas de trabalho próprias do campo? Qual a potencialidade formadora e deformadora das diferentes formas de trabalho desenvolvidas atualmente pelos trabalhadores do campo? E que conhecimentos são produzidos por estes trabalhadores (e são deles exigidos no trabalho) que se subordinam à lógica da agricultura industrial e de negócio e, no contraponto, por aqueles que hoje assumem o desafio de reconstrução prática de uma outra lógica de agricultura, a agricultura camponesa do século XXI, que tenha como princípios organizadores a soberania alimentar, o direito dos povos às sementes e à água, a agroecologia, a cooperação agrícola? No âmbito específico da discussão sobre formação profissional, por exemplo, pensar na lógica da agricultura camponesa não é pensar em um trabalho assalariado, que é a forma desde a qual se pensa hoje, inclusive do ponto de vista crítico, (nos debates do médio integrado desde a concepção da politecnia), a questão da formação dos trabalhadores para sua inserção nos processos produtivos.
3ª) Na reafirmação da importância da democratização do conhecimento, do acesso da classe trabalhadora ao conhecimento “historicamente acumulado”, ou produzido na luta de classes, a Educação do Campo traz junto uma problematização mais radical sobre o próprio modo de produção do conhecimento, como crítica ao mito da ciência moderna, ao cognitivismo, à racionalidade burguesa insensata; como exigência de um vínculo mais orgânico entre conhecimento e valores, conhecimento e totalidade do processo formativo.
A democratização exigida, pois, não é somente do acesso, mas também da produção do conhecimento, implicando em outras lógicas de produção e superando a visão hierarquizada do conhecimento própria da modernidade capitalista. As questões hoje da construção de um novo projeto/modelo de agricultura, por exemplo, não implicam somente no acesso dos trabalhadores do campo a uma ciência e a tecnologias já existentes. Exatamente porque elas não são neutras. Foram produzidas desde uma determinada lógica, que é a da reprodução do capital e não a do trabalho. Esta ciência e estas tecnologias não devem ser ignoradas, mas precisam ser superadas, o que requer uma outra lógica de pensamento, de produção do conhecimento. No caso do desafio atual em relação à agricultura camponesa, efetivamente não se trata de “extensão”, mas de “comunicação” (Freire, 2001) com e entre os camponeses para produzir o conhecimento necessário.
Esta compreensão sobre a necessidade de um “diálogo de saberes” está em um plano bem mais complexo do que afirmar a valorização do saber popular, pelo menos na discussão simplificada que predomina em meios educacionais e que na escola se reduz por vezes a um artifício didático vazio. O que precisa ser aprofundado é a compreensão da teia de tensões envolvida na produção de diferentes saberes, nos paradigmas de produção do conhecimento. E do ponto de vista metodológico isso tem a ver com uma reflexão necessária sobre o trabalho pedagógico que valorize a experiência dos sujeitos (Thompson) e que ajude na reapropriação (teórica) do conhecimento (coletivo) que produzem através dela, colocando-se na perspectiva de superação da contradição entre trabalho manual e trabalho intelectual, que é própria do modo de organização da produção capitalista.
Alguns intelectuais têm alertado para o risco desta reflexão cair em uma espécie de relativização do conhecimento ou da luta histórica da classe trabalhadora pelo acesso à ciência, ao conhecimento que ajuda a produzir pelo seu trabalho, mas do qual é alienado. Há sim este risco de se cair numa postura relativista, embora hoje bem mais presente em determinados posicionamentos intelectuais do que nas práticas e lutas concretas dos trabalhadores. Porém é preciso perguntar se negar a contradição produzida pelo capitalismo no modo de produção do conhecimento, que absolutizou a ciência ou a racionalidade científica, ou uma forma dela, ao mesmo tempo em que a fez refém de uma lógica instrumental a serviço da reprodução do capital e definiu mecanismos de alienação do trabalhador em relação ao próprio conhecimento que produz pelo seu trabalho, não é um risco ainda maior para nossos objetivos de superação do capitalismo.
Do ponto de vista de um balanço projetivo da Educação do Campo nesta questão específica da tradição pedagógica que assumiu continuar, é preciso perguntar até que ponto esta mensagem está chegando aos educadores e às educadoras do campo e se estas novas interrogações estão entrando em alguma medida na agenda da elaboração teórica e do debate pedagógico da educação dos trabalhadores de nosso tempo.

Afirmação das Escolas do Campo
Uma questão específica colocada pela Educação do Campo tanto à política educacional como à teoria pedagógica diz respeito à concepção de escola e à discussão sobre uma “escola do campo”.
Novamente escutemos uma interpelação freqüente: como assim uma “escola do campo”? Então a escola não é escola em qualquer lugar, em qualquer tempo, seja para quem for? E por que nunca se fala de uma “escola da cidade”? Por acaso a Educação do Campo defende um tipo de escola diferente para as famílias dos trabalhadores do campo? E nosso debate histórico sobre a escola unitária onde fica?
Não. A crítica originária da Educação do Campo à escola (ou à ausência dela) nunca defendeu um tipo específico de escola para os trabalhadores do campo. Sua crítica veio em dois sentidos: - sim, a escola deve estar em todos os lugares, em todos os tempos da vida, para todas as pessoas. O campo é um lugar, seus trabalhadores também têm direito de ter a escola em seu próprio lugar e a ser respeitados quando nela entram e não expulsos dela pelo que são... Como lugar de educação a escola não pode trabalhar “em tese”: como instituição cuja forma e conteúdo valem em si mesmos, em qualquer tempo e lugar, com qualquer pessoa, desenvolvendo uma “educação“ a-histórica, despolitizada (ou falsamente despolitizada), asséptica...
O “do campo”, neste caso, retoma a velha discussão sobre como fazer uma escola vinculada à “vida real”, não no sentido de apenas colada a necessidades e interesses de um cotidiano linear e de superfície, mas como síntese de múltiplas relações, determinações, como questões da realidade concreta. Retoma a interrogação sobre a necessidade/possibilidade de vínculo da escola, de seu projeto pedagógico, com sujeitos concretos na diversidade de questões que a “vida real” lhes impõe. Uma escola cujos profissionais sejam capazes de coordenar a construção de um currículo que contemple diferentes dimensões formativas e que articule o trabalho pedagógico na dimensão do conhecimento com práticas de trabalho, cultura, luta social.
Trata-se de uma reflexão que pode nos ajudar a relembrar que continuamos sim defendendo e lutando pela escola unitária, mas que o unitário não pode ser um falso universalismo (porque abstrato ou porque de alguma forma “imperial”, ou seja, tratar de uma particularidade como se ela fosse universal). O unitário é a “síntese do diverso” e o campo historicamente não tem sido considerado nessa diversidade. Por isso já há quem afirme que hoje no Brasil a construção da escola unitária passa pela Educação do Campo.
Como afirmou Walter Benjamin, e penso que vale para toda esta primeira questão de compreensão da constituição originária da Educação do Campo, a verdade está na tensão entre o particular e o universal. Vale então frisar/reafirmar: a Educação do Campo não nasceu como defesa a algum tipo de particularismo, mas como provocação/afirmação desta tensão entre o particular e o universal: no pensar a transformação da sociedade, o projeto de país, a educação, a escola... No mesmo raciocínio talvez seja importante reafirmar também que as lutas e as práticas originárias da Educação do Campo nunca defenderam ou se colocaram na perspectiva de fortalecer a contradição inventada pelo capitalismo entre campo e cidade. A questão é de reconhecer a especificidade dos processos produtivos e formadores do ser humano que acontecem no campo, compreender como historicamente essa relação foi formatada como sendo de oposição, exatamente para que se explicitem os termos sociais necessários à superação desta contradição.

Sobre as tensões/contradições do percurso da Educação do Campo
É preciso considerar, como afirmei no início destas notas, que o percurso é curto e nossa capacidade de retrovisão histórica por isso é ainda pequena. Mas talvez já seja possível identificar algumas expressões importantes do movimento da realidade, particularmente nestes 10 anos do “batismo”, ou seja, identificar as principais tensões e contradições constituidoras deste percurso, para tentar perceber os principais desafios do momento atual.
Destaco dois grandes focos de tensões ou de concentração das contradições: o primeiro e principal está na própria dinâmica do campo dentro da dinâmica do capitalismo e do acirramento das contradições sociais que vem do movimento de expansão do capital, brutalmente acelerado no campo nestes últimos anos. O segundo diz respeito à relação tensa (que na sociedade capitalista não tem como não ser contraditória) entre Pedagogia do Movimento e políticas públicas, relação entre Movimentos Sociais com projeto de transformação da sociedade e Estado.
Note-se que não se trata de contradições da Educação do Campo em si mesma, ou criadas pelo seu movimento específico, mas sim as contradições que estando presentes no contexto de sua origem foram delineando seu percurso, ao mesmo tempo que tem sido explicitadas e mexidas por ele. Por isso não podem deixar de ser consideradas na interpretação e no debate de balanço e projeção da Educação do Campo.

Educação do Campo e luta de classes
O desenvolvimento da Educação do Campo acontece em um momento de potencial acirramento da luta de classes no campo, motivado por uma ofensiva gigantesca do capital internacional sobre a agricultura, marcada especialmente pelo controle das empresas transnacionais sobre a produção agrícola, que exacerba a violência do capital e de sua lógica de expansão sobre os trabalhadores, e notadamente sobre os camponeses. No caso brasileiro, podemos observar como esta lógica se realiza através de diferentes e combinados movimentos, apenas aparentemente contraditórios entre si, porque integram uma mesma lógica: expulsa trabalhadores, famílias, do campo ao mesmo tempo em que promete incluí-los na modernidade tecnológica do agronegócio, subordina a todos os trabalhadores, de alguma forma, ao modelo tecnológico que vem sendo chamado de “agricultura industrial” e mantém seus territórios de trabalho escravo.
A ofensiva do capital no campo (talvez violenta na proporção da própria crise estrutural do capital) está tornando mais explícitas as contradições do sistema capitalista, contradições que são sociais, mas também ambientais e relacionadas ao futuro do planeta, da humanidade. O debate mundial que está sendo feito hoje sobre a crise alimentar é emblemático, inclusive para mostrar a relação campo e cidade.
O agronegócio, representação econômica e política do capital no campo, tem feito também uma ofensiva de disputa ideológica na sociedade: “sim, dizem os ‘empresários’ do campo, é preciso acabar com o latifúndio improdutivo, mas através do agronegócio, da modernização da agricultura, do campo e não da Reforma Agrária e dos Movimentos Sociais atrasados que ainda lutam por ela: é o agronegócio que vai resolver os problemas da produção de alimentos, de trazer mais divisas ao país...” Mas por via das dúvidas, não se fique só neste plano de luta: os grandes proprietários de terra precisam de mais tranqüilidade para “trabalhar” (explorar o trabalho) e por isso novas investidas de criminalização dos Movimentos Sociais voltam sistematicamente, ainda que nesse contexto de enfraquecimento do pólo do trabalho, dos trabalhadores, suas lutas sejam mais de resistência do que de enfrentamento direto ao capital. O perigo é se alguns setores da sociedade escutá-los: se, por exemplo, se passar a associar defesa do meio ambiente com combate à lógica de produção de alimentos própria do agronegócio. Maior perigo ainda se as organizações ou os Movimentos Sociais aprofundarem sua atuação sobre as contradições do modelo atual, agora mais visíveis pela crise mundial do capitalismo.
A lógica de expansão do capitalismo no campo, ou a lógica de pensar o campo como lugar de negócio, não inclui, não precisa das “escolas do campo”, mas parece já estar exigindo que a questão da educação, e particularmente da educação escolar dos trabalhadores do campo entre (ou volte) à agenda do país: primeiro porque a chamada “reestruturação produtiva” chegando agora ao campo requer uma mão-de-obra mais qualificada, pequena é verdade (e não estritamente formada para o trabalho agrícola em si), mas numa demanda que já justifica o interesse dos “empresários rurais” em discutir formação ou educação profissional, reajustes na “vocação” das escolas agrotécnicas, novos currículos para os cursos de agronomia, cursos superiores voltados diretamente à gestão do agronegócio.
Segundo, porque nesse contexto de “modernização da agricultura”, onde a chamada “agricultura familiar” deve se inserir para sobreviver (“sobreviverão os melhores, os mais modernos”, é a afirmação) já não parece tão ruim que estes agricultores tenham acesso à escolarização básica: espécie de “exército de reserva” para as demandas das empresas que comandam os negócios agrícolas: mas isso sem excessos, é claro, porque afinal é sempre bom poder contar com a alternativa do trabalho escravo em alguns lugares (!) e o Estado precisa dar prioridade às demandas específicas do capital e não gastar recursos na construção de um sistema público de educação no próprio campo, que necessariamente atenderia as demandas do pólo do trabalho.
Terceiro, onde afinal existirem escolas para as famílias trabalhadoras do campo seja pela pressão dos Movimentos Sociais ou por concessão de empresas “humanitárias”, elas podem ser (já foram em outros tempos) um bom veículo de difusão da ideologia do agronegócio: através da nova geração “modernizar” as mentes para a nova “revolução verde”, a dos transgênicos, da tecnologia “terminator”, da monocultura para negócio, dos insumos químicos industriais, da maquinaria agrícola pesada, completamente submetida à lógica da reprodução do capital. Em muitos estados este tipo de investida já tem se materializado em materiais didáticos ou para-didáticos produzidos pelas próprias empresas, muitas vezes com recursos públicos.
E se tudo isso puder acontecer com mais facilidade e agilidade porque hoje existe nos governos a “pasta” da Educação do Campo, “viva a Educação do Campo”! Apenas é preciso tratar de afastá-la desses agitadores pré-modernos, ou de Movimentos Sociais como o MST, que ainda continuam empunhando a bandeira da Reforma Agrária, da soberania alimentar e energética, da biodiversidade, do respeito ao meio ambiente...
Nesse mesmo movimento da realidade há pelo menos outros dois elementos importantes: aumentou a pressão dos Movimentos Sociais sobre a esfera pública, cobrando especialmente o direito de acesso à escolarização pública, básica e superior. Aumentou porque foram entrando novos movimentos ou grupos nessa pressão: outras organizações da Via Campesina Brasil (o Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB, o Movimento das Mulheres Camponesas – MMC, O Movimento dos Pequenos Agricultores – MPA, a Pastoral da Juventude Rural – PJR, A Comissão Pastoral da Terra – CPT e a Federação dos Estudantes de Agronomia – FEAB), o movimento sindical do campo (especialmente o vinculado à Confederação Nacional dos Trabalhadores da Agricultura – CONTAG e à Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar – FETRAF). E aumentou porque o trabalho dos Movimentos Sociais e as suas conquistas destes anos, ainda que apenas de políticas focais, como o PRONERA, por exemplo, ajudaram a ampliar a consciência do direito, mexer com o imaginário dos camponeses: “pensando bem, não é verdade que nós camponeses não precisamos de estudo e que não podemos continuar estudando...” Além disso, há todo um trabalho específico com a militância, feito por alguns Movimentos Sociais, sobre o dever de estudar para poder compreender melhor a complexidade do momento atual da luta de classes. Por isso aumenta o número de cursos de formação, em que pese o refluxo organizativo e das lutas sociais de massa.
O outro elemento diz respeito a uma característica da sociedade brasileira que prima por discursos e documentos avançados, no plano de um ideário republicano e de uma democracia liberal, ainda que na prática os desminta a todo momento: é assim que temos, por exemplo, o ECA (Estatuto da Criança e Adolescente) há 18 anos, elogiado no mundo inteiro, e descumprido desavergonhadamente em cada esquina. É nesta mesma lógica que fica difícil afirmar publicamente que determinada parcela da população tem menos direito à educação pública do que outros. Direito universal, individual (virtual, é claro). E no caso da crítica de que veio tratando a Educação do Campo nestes dez anos, há um ingrediente a mais: afinal não fica bem para um país “emergente” como o Brasil ter índices de analfabetismo e de acesso à educação básica que são “puxados para baixo” por “culpa” da população rural e, ainda pior, o governo federal nem dispor de dados estatísticos específicos desta situação e que permitam pelo menos anunciar sua disposição de ter algumas políticas nessa área.
Este movimento, nesses e noutros aspectos que precisam ser complementados em um esforço de análise mais completa e rigorosa, talvez explique porque afinal a Educação do Campo “vingou”, existe, entrou na agenda de Governos, Universidades, Movimentos Sociais; virou questão, embora não tenha se tornado política pública, e menos ainda política de Estado. Na prática, do ponto de vista do público tem combinado políticas focais (importantes) de ampliação do acesso à educação básica e de formação de educadores do campo com a manutenção de políticas de fechamento de escolas ou a retomada de programas alienígenas como o da Escola Ativa.
Algo que precisamos aprofundar em nosso debate é que a tendência de futuro, considerada a correlação de forças políticas do movimento atual, parece ser a de retrocesso ao outro pólo do contraponto, pelo menos do ponto de vista da política de governos: um retorno à educação rural, ou seja, de uma política sim para a educação dos trabalhadores do campo, frise-se, para eles, a serviço da nova fase do capitalismo no campo, o que significa dizer, voltada para os interesses do “avanço do capitalismo financeiro e das empresas transnacionais sobre todos os aspectos da agricultura e do sistema alimentar dos países e do mundo” (Via Campesina, 2008).
Será este então o principal balanço dos dez anos de Educação do Campo: o que afinal conseguimos foi trazer de volta à agenda da política educacional do país a educação rural, que na época da primeira Conferência Nacional de Educação do Campo em 1998, já tinha sido descartada como “residual”, atrasada, pelos governos neoliberais mais autênticos?
O que naquele período não era possível enxergar como hoje, é que o quadro em que o debate da Educação do Campo estava se inserindo era o de transição de modelos econômicos, que implicaria em um rearranjo do papel da agricultura na economia brasileira (capitalista), passando a ter um lugar de maior destaque, só que pelo pólo do agronegócio e projetando uma marginalização ainda maior da agricultura camponesa, da Reforma Agrária, ou seja, das questões e dos respectivos sujeitos originários da luta por uma Educação do Campo. Por isso alguns aliados que conseguimos em 1998 para recolocar o rural na agenda do país não são necessariamente aliados hoje na tomada de posição sobre que rural deve estar na agenda, inclusive da educação, entre o projeto do agronegócio e o projeto da agricultura camponesa, de convivência cada vez menos possível no cenário de reprodução (desenfreada ou desesperada?) do capital.
Menos ainda podíamos saber naquele momento que dez anos depois esta própria hegemonia estaria em crise e que sua primeira expressão mais explosiva diria respeito à questão dos alimentos, explicitando que a ofensiva do capital sobre a agricultura está pondo em risco a possibilidade de alimentar o grande contingente de pessoas do nosso planeta.

Pedagogia do Movimento e Política Pública
O segundo grande foco de tensões e contradições no percurso da Educação do Campo diz respeito à relação entre Pedagogia do Movimento e política pública ou na relação entre Movimentos Sociais e Estado. Não é outro foco no sentido que aconteça separado do primeiro, bem ao contrário. A distinção aqui é para olhar o mesmo movimento da realidade desde um outro ângulo, relacionado aos sujeitos originários da Educação do Campo.
A Educação do Campo se construiu pela passagem da política produzida nos Movimentos Sociais para o pensar/pressionar pelo direito do conjunto dos camponeses ou dos trabalhadores do campo. Isso implicou em um envolvimento mais direto com o Estado na disputa pela formulação de políticas públicas específicas para o campo, necessárias para compensar a histórica discriminação e exclusão desta população do acesso a políticas de educação, como a tantas outras. No tipo de sociedade em que vivemos bem se sabe em que jogo político isso se insere, ou seja, em que correlação de forças e opção de classe se move este Estado.
A dimensão da política pública está na própria constituição originária da Educação do Campo, mas sua configuração e mesmo sua centralidade foi definida no processo, com a ampliação dos sujeitos envolvidos e das articulações políticas, e pelas novas possibilidades abertas por um governo federal como o de Lula da Silva. Não por acaso é a II Conferência Nacional de Educação do Campo de 2004 que confirma a força assumida pela luta por uma política pública de Educação do Campo, através do lema aprovado pelos seus participantes: “Educação do Campo: direito nosso, dever do Estado”.
É importante ter presente uma sutileza que marca a Educação do Campo: o MST desde o seu início lutou por escolas públicas, mas até o momento de entrada na Educação do Campo não tinha colocado em sua agenda de debates e de lutas a questão da política pública, de pensar a educação para além de si mesmo, ou para além da esfera dos Movimentos Sociais, de pressionar o Estado a garantir direitos para o conjunto da população do campo, de buscar interferir, afinal, no desenho da política educacional brasileira.
O percurso da Educação do Campo foi desenhando a dimensão da política pública como um dos seus pilares principais, na tensão permanente de que esta dimensão não “engolisse” a memória e a identidade dos seus sujeitos originários, tensão tanto mais acirrada pela lógica da “política pequena” que domina o “gerenciamento” do Estado brasileiro, algo não de todo compreendido pelos Movimentos Sociais (agora talvez um pouco mais do que antes...).
Esta focalização de lutas, de articulações, de práticas, em torno da política pública vem representando ao mesmo tempo um avanço e um recuo, um alargamento e um estreitamento, radicalização e perda de radicalidade na política dos Movimentos Sociais do Campo em relação à educação. É um “salto de qualidade” no sentido de superação dialética do momento anterior, sobre o que de fato ainda não se tem condições objetivas (tempo histórico) de analisar com mais profundidade, mas em torno das quais já é possível arriscar algumas percepções.
Em termos ainda elementares de análise, podemos afirmar que o avanço, ou o salto de qualidade, tem a ver com a necessária articulação entre os próprios Movimentos Sociais, dos Movimentos Sociais com outras forças, outros sujeitos, materializando uma perspectiva muitas vezes defendida no ideário de cada Movimento, mas difícil de concretizar, que é a de romper com corporativismos, particularismos, interesses imediatos. Isso implica em outro avanço, que é o de pensar o público recuperando o seu sentido originário de um espaço próprio aos interesses do povo, da maioria da população (e não como um lugar ou uma política subordinada a um Estado de classe); espaço, nesse sentido, de democratização da participação política (governo do povo). Para os Movimentos Sociais, lutar pela Educação do Campo é passar a pensar na educação do conjunto da classe trabalhadora e é buscar pautar dessa forma, em uma perspectiva de classe, a questão da política educacional. E no específico de organizações como o MST, significa passar a compreender que a ocupação da escola pelo Movimento precisa ser feita/pensada como apropriação da escola pelos trabalhadores, pelo seu projeto histórico e não apenas pelos interesses imediatos da organização, por mais justos, politizados e amplos que eles possam ser.
Entrar na disputa de forma e conteúdo de políticas públicas, como buscam fazer os sujeitos da Educação do Campo, é de fato entrar em uma disputa direta e concreta dos interesses de uma classe social no espaço dominado pela outra classe, com todos os riscos (inclusive de cooptação) que isso implica, mas também com essas possibilidades de alargamento de compreensão da luta de classes e do que ela exige de quem continua acreditando na transformação mais radical da sociedade, na superação do capitalismo.
Esta é a radicalização, e nesta radicalização talvez a grande novidade histórica da Educação do Campo, mas que pode implicar, já tem implicado neste percurso tão breve, em perda de radicalidade. A radicalização tem a ver, pois, com o alargamento de perspectiva: não há como construir um projeto alternativo de campo em nosso país sem ampliar as lutas, sem ampliar o leque de alianças, inclusive para além do campo; e não tem como avançar em transformações importantes sem incluir na agenda de lutas a questão da democratização do Estado, com todas ou por todas as contradições que isso encerra. E para cada Movimento Social em particular, não há justificativa para ocupar-se da educação, e da educação do conjunto dos trabalhadores, se não for por objetivos relacionados a lutas mais amplas.
A perda de radicalidade, por sua vez, tem a ver com concessões e estreitamentos, que também podem ser entendidos como recuos, retrocessos. Na sociedade em que estamos e numa correlação de forças tão desfavorável aos trabalhadores e à própria idéia de transformações sociais mais radicais, não se espere que o Estado brasileiro, e nem mesmo os “governos de plantão”, aceitem (1º) uma política de educação que tome posição (prática) por um projeto popular de agricultura, de desenvolvimento do campo, do país, que ajude a formar os trabalhadores para lutar contra o capital e para construir outro sistema de produção, outra lógica de organização da vida social (que é exatamente o objetivo originário da Educação do Campo). E (2º) que aceitem os Movimentos Sociais como protagonistas da Educação do Campo, que aceitem os trabalhadores pobres do campo como sujeitos da construção (forma e conteúdo) de políticas públicas, ainda que específicas para sua própria educação. Se fosse assim, a hegemonia do Estado já seria outra.
O estreitamento que vem sendo percebido no percurso da Educação do Campo é, pois, de tentativa, especialmente dos governos, de fazer uma “assepsia” política, especialmente pelo deslocamento dos seus protagonistas originários: afinal, parecem pensar muitos gestores públicos, para que continuar ouvindo os Movimentos Sociais se sua bandeira já está incorporada nos discursos e documentos dos governos? É melhor que o “sistema” cuide da Educação do Campo porque já sabe como fazer isso. Ademais, os Movimentos tem o “mau costume” de politizar a educação e isso não é bom para o “sistema”! E deslocar a centralidade dos Movimentos Sociais no debate da Educação do Campo acaba sendo também uma forma de alterar seu conteúdo político-pedagógico de origem, buscando enfraquecer ou relativizar ao máximo uma possível influência de concepções de educação sobre outros sujeitos, notadamente sobre os educadores das escolas do campo.
Há um outro detalhe significativo neste estreitamento: na lógica dominante de formulação de políticas públicas e mesmo do sistema educacional, política de educação só pode ser política de educação escolar. Daí a tensão permanente: para o sistema Educação do Campo trata de escolas, o que representa um recuo radical na concepção alargada de educação defendida pelos Movimentos Sociais, pela Pedagogia do Movimento. No âmbito das políticas isso se tenta resolver lutando por diferentes políticas, relacionadas à produção, à cultura, à saúde. Precisa ter uma “pasta” de Educação do Campo quase em cada ministério (ou secretaria de estado) para garantir fragmentos que relembrem a visão de totalidade originária na esfera dos direitos.
Além disso, estreita-se pelo “enquadramento”: a pressão social trouxe ao debate a idéia da especificidade, mas no momento da formulação de uma política a tendência nunca é o específico (pela novidade do conteúdo) alterar a forma, mas sim o específico ter que se enquadrar na forma já instituída, ainda que seja a forma que contribuiu para a exclusão e a discriminação que justificaram a discussão da especificidade (!). Algo um pouco diferente se admite hoje em algumas políticas focais, recortadas no tempo, no espaço, nos sujeitos, mas que então não se configuram como políticas efetivamente públicas, de perspectiva universalizante.
Diga-se de passagem, estas políticas focais têm sido marca do governo atual, notadamente o federal e é preciso dizer que são importantes no jogo político, porque fazem emergir as contradições estruturais, e por isso mesmo são tão, e cada vez mais, combatidas pelas forças políticas dominantes.
Nos Movimentos Sociais do Campo, ou pelo menos em alguns deles, esta questão das políticas públicas, ou de dar prioridade à luta pela democratização do Estado a favor dos interesses sociais dos trabalhadores tem sido foco de tensões e motivado debates intensos. Às vezes chega a parecer para alguns que se trata de uma escolha: ou ficamos com a Educação do Campo (entendida então como política pública) ou com a Pedagogia do Movimento como se as contradições pudessem se resolver no plano do ideário e não da realidade; como se não houvesse circunstâncias objetivas condicionando o caminho seguido até aqui.
Nesta mesma perspectiva, já integra o percurso da Educação do Campo um movimento de crítica teórica vindo de setores de esquerda, notadamente acadêmicos. Algo que precisa ser analisado com mais rigor, mas que me atrevo a dizer que em alguns casos acaba se somando às forças que buscam reviver a lógica perversa da educação rural, sem precisar brigar por esse nome (como ainda fazem alguns governos mais retrógrados como o do Rio Grande do Sul, por exemplo). Estou me referindo a dois tipos de críticas que têm aparecido em alguns textos ou exposições mais recentes, pontuais: uma a de que a Educação do Campo seria politicamente conservadora por se ‘misturar’ com o Estado (burguês) e então não ter como portar objetivos de transformação social. E a outra de que a especificidade a condena a ser divisionista da classe trabalhadora e, pior, trabalhando com a parcela dos camponeses, só pode ser reacionária.
Estas posições, além de fortemente idealistas parecem retomar, sem explicitar, aquela visão de “como assim, camponeses”? Porque talvez isso de fato estranhe a muitos: como entender que um Movimento Social, como o MST, de base social camponesa, radicalize as lutas de enfrentamento direto ao capital e ao mesmo tempo aceite participar de debates de formulação de políticas de governo, ainda que depois não seja considerado nelas? Uma análise mais histórica das próprias transformações na luta pela Reforma Agrária, provocadas pela própria dinâmica contraditória do capitalismo, certamente colocaria a questão muito mais no plano dos impasses do que no da “estranheza” ou mesmo da incoerência.
É fundamental não perdermos na trajetória da Educação do Campo a centralidade da dimensão da crítica prática que somente é assegurada pelos seus sujeitos mais diretos: os trabalhadores do campo, no movimento real (contraditório) de formação de sua consciência, de construção de seu projeto, inclusive educativo. Se deslocarmos esta centralidade em nome da “afirmação obstinada de princípios abstratos”, poderemos, sem querer, estar ajudando a eliminar as contradições no plano das idéias, o que na prática significa hoje, repetindo e não repetindo a história, reforçar politicamente o pólo da “educação rural”.

Sobre impasses e desafios do momento atual
Nestas notas penso, sobretudo, nos impasses relacionados à atuação dos Movimentos Sociais em relação à Educação do Campo, pela importância atual da retomada deste protagonismo e, especialmente na relação com o Estado, do desafio de manter vivo o contraponto da Pedagogia do Movimento. Desafio que não é apenas dos próprios Movimentos Sociais, mas de todos os sujeitos comprometidos com o projeto político-pedagógico originário da Educação do Campo, através de uma ação política articulada e não por fragmentos, como se está tendendo a fazer hoje.
Uma questão que me parece crucial para o debate dos impasses do momento atual é que estamos diante de um risco efetivo de recuo da pressão dos Movimentos Sociais por políticas públicas de Educação do Campo seja pelo refluxo geral das lutas de massas, e conseqüentemente o enfraquecimento dos Movimentos Sociais, acuados pela necessidade de garantir sua sobrevivência básica, seja pelo receio de “contaminação ideológica” ou de cooptação pelo Estado, ou até pela falta de consenso sobre o papel da educação na luta de classes e neste momento histórico em particular. Entendo que este recuo seria um retrocesso histórico para a classe trabalhadora e para a história da educação brasileira.
Um recuo quantitativo e qualitativo. No meio de todas as contradições mencionadas e dos limites práticos que a correlação de forças impõe ao projeto dos trabalhadores, talvez se possa afirmar que nunca estivemos no país numa situação como a atual em relação à ampliação da noção/consciência do direito à educação entre os camponeses (pelo menos entre aqueles com alguma aproximação a organizações coletivas) e ao reconhecimento deste direito pela sociedade.
Nesse sentido o desafio para os Movimentos Sociais é aumentar a pressão pela massificação das lutas para além dos trabalhadores que os integram, mostrando na prática a falácia do discurso liberal da universalização do acesso à educação. E vincular esta luta a outras lutas sociais que assumem o caráter de luta de classes, mantendo a contradição instalada.
É importante ter presente que o recuo dos Movimentos Sociais na luta pela educação significa uma diminuição drástica da pressão pela conquista de direitos já reconhecidos pela sociedade, pelo retorno à dimensão do direito individual, abstratamente universal, diminuindo a tensão entre o particular e o universal, entre direitos individuais e sujeitos coletivos de direitos.
O impasse tem a ver com a tendência crescente (e compreensível pela lógica da sociedade em que ainda vivemos) de fortalecer na discussão e implementação (precária) da política pública de Educação do Campo a lógica do sistema em geral, pressionando pelo esvaziamento do seu conteúdo emancipatório originário e pela ampliação da dimensão regulatória, buscando de todo modo enquadrar na ordem dada demandas que são da “contra-ordem”.
Esse impasse está nos Movimentos Sociais e no governo atual, especialmente o federal, ainda que por motivos diferentes e com um conteúdo diferente. Se a pressão dos Movimentos Sociais diminuir o governo não conseguirá avançar sequer nas políticas focais e arranhar políticas públicas que lhe permitam alterar estatísticas, ‘ficar bem na foto’ da universalização dos direitos liberais. Porque o agronegócio pode atender suas demandas de outra forma. Tenta usar a Educação do Campo a seu favor, mas não precisa de um sistema público de educação no campo para isso (até porque ele pode ser perigoso aos seus interesses, em médio prazo). Por outro lado se os governos não tiram do foco da Educação do Campo os Movimentos Sociais, seu protagonismo, há uma traição à lógica estrutural da política instituída e ao projeto de classe do Estado que representam. Algo que não ousam (ou nem pensam) fazer em outras áreas, tampouco ousariam nessa.
Para os Movimentos Sociais de projeto político mais radical o impasse parece estar no seguinte: seu potencial de avanço “corporativo” está em vias de esgotamento, nessa área da política educacional como em outras. E enquanto não se vislumbram mudanças mais estruturais na sociedade, seu avanço (ou sobrevivência) não pode prescindir das lutas (supostamente menos radicais) pela democratização do Estado em favor dos trabalhadores. Não há como massificar o acesso da base social dos Movimentos, e muito menos do conjunto dos camponeses, à educação básica sem a mediação hoje da Educação do Campo (com este nome ou outro), na sua dimensão de política pública (plena ou parcial). E parece cada vez mais difícil avançar na formação política dos trabalhadores para compreender a realidade do capitalismo brasileiro sem uma base geral de educação anterior fornecida pela educação escolar, ainda que de conteúdo pouco emancipatório.
Por outro lado, conformar-se com a regulação do Estado parece incoerente com os objetivos políticos desses Movimentos e mais, pode ter mesmo um efeito despolitizador de sua base ou de sua militância se não houver um trabalho pedagógico adequado, uma política de formação que permita entender o que mesmo está em questão quando se faz esta relação com o Estado. E na prática, já se disse antes, não é tão simples manter-se fiel à Pedagogia do Movimento quando se tenta ser sujeito de políticas públicas numa sociedade como a nossa, ainda que se saiba que é exatamente o conteúdo da primeira que pode pressionar pela alteração da forma da segunda.
Um grande desafio para os Movimentos Sociais na superação desses impasses é não confundir a Educação do Campo com a Pedagogia do Movimento e ao mesmo tempo não trabalhá-las em uma visão antinômica, como coisas separadas. Se os Movimentos Sociais entenderem a Educação do Campo somente na sua dimensão de política pública e de educação escolar e continuarem a pressão, mas apenas pelo direito, recuando na disputa pelo conteúdo da política e pela concepção de campo e de educação, estarão abrindo mão da identidade que ajudaram a construir e estarão eliminando a contradição pelo pólo da educação rural modernizada.
Por outro lado, é preciso entender que a luta pela Educação do Campo não substitui a construção histórica da Pedagogia do Movimento, e da construção do projeto de educação de cada Movimento Social, naquele sentido alargado de uma educação vinculada a processos de luta social organizada, capaz de mexer na estrutura de valores, na visão de mundo dos camponeses, de modo que assumam a perspectiva de construção de um projeto de campo que se situe “para além do capital” (Mészáros, 2005), e que essa educação deve ser feita de forma menos tutelada e escolarizada e desde as demandas próprias da formação dos militantes da organização, mas na necessária perspectiva de classe trabalhadora unificada na luta contra o capitalismo. Se não for assim faltará o acúmulo de radicalidade para a própria disputa do conteúdo e do destino histórico da Educação do Campo.
Juntando os dois movimentos, o que se busca afinal é uma ampliação de perspectiva, necessária para alimentar lutas sociais conseqüentes pela transformação das condições de vida dos trabalhadores e pela projeção de relações sociais menos degradantes do ser humano.
A retomada do protagonismo dos Movimentos Sociais na Educação do Campo é hoje um grande desafio e que passa por uma interpretação mais rigorosa e pela difusão ampliada da compreensão desse momento da luta de classes, que inclui o debate das contradições da fase atual do capitalismo e as conseqüências que traz para a agricultura e para a vida (ou morte) dos camponeses, bem como para o conjunto da sociedade. Estamos entrando em um período muito propício para esse debate, e a questão da produção de alimentos pode ser uma boa porta de entrada à discussão da realidade ou do “quadro” em que nossas ações educativas se inserem. Este debate precisa ser feito com os diferentes sujeitos da Educação do Campo, mas especialmente com os próprios trabalhadores e suas famílias, e com os educadores das escolas do campo.
O mesmo desafio passa pela retomada ou pelo fortalecimento do vínculo orgânico da Educação do Campo (enquanto crítica, enquanto práticas e enquanto disputa política) com as lutas de resistência dos trabalhadores do campo e a construção de um projeto de agricultura que tenha outra lógica que não esta que passou a dominar o mundo, que é a da agricultura com o objetivo do negócio, fazendo dos alimentos e da terra um objeto a mais da especulação do capital financeiro, em detrimento das pessoas (Via Campesina, 2008). Esta outra lógica é hoje identificada pelo contraponto da agricultura camponesa, comprometida com uma forma de produção que garanta a alimentação dos povos do mundo, de cada povo, de todas as pessoas, desafiando-se também a repensar a concepção tradicional de agricultura dos próprios camponeses, agricultores familiares, trabalhadores rurais.
O vínculo da Educação do Campo com o projeto da agricultura camponesa é seu “destino de origem”, mas não está dado e ao contrário, somente será construído no enfrentamento concreto das tendências projetadas pelas contradições em que seu percurso foi constituído, potencializando as contradições da realidade social mais ampla explicitadas pelo momento de crise estrutural do capitalismo, um enfrentamento que dificilmente será protagonizado por outros sujeitos que não os Movimentos Sociais que hoje assumem o embate de projetos como sua ação política principal.
A inserção neste embate implica em colocar na agenda política e pedagógica das lutas e das práticas de Educação do Campo questões como crise alimentar, crise energética e crise financeira, soberania alimentar, reforma agrária (incluindo nela o debate da propriedade social), agroecologia de perspectiva popular, biodiversidade, direito às sementes e à água como patrimônio dos povos, cooperação agrícola, descriminalização dos Movimentos Sociais, direitos sociais dos camponeses e das camponesas, crianças, jovens, adultos, idosos. Trata-se de uma agenda e uma disputa que vão muito além do campo das políticas públicas, mas que não o exclui, significando nele pressão de conteúdo, concepção, especialmente no que se refere ao direito à educação, mas também de tomar parte na definição sobre que educação, destacando-se a disputa/nova elaboração sobre que formação para o trabalho no campo.

Finalizando sem concluir
Este é um debate que está em curso, buscando acompanhar o movimento da realidade que expressa. Finalizo estas notas chamando nossa atenção para o desafio político, ao mesmo tempo prático e teórico, que temos hoje em relação à Educação do Campo.
Do ponto de vista da construção de uma chave metodológica de interpretação, que foi o objetivo primeiro da produção deste texto, insisto na importância de apreendermos o movimento real da crítica da educação em que se constituiu a Educação do Campo, e com o cuidado de não inverter o movimento dialético necessário: da realidade às categorias que podemos utilizar ou precisamos criar para entendê-la em sua complexidade e não das categorias à realidade, buscando “encaixá-la” em determinada teoria a qualquer custo.
Talvez não seja pouco buscar apreender a “novidade” (nos dias de hoje) de uma práxis que tenta negar as antinomias e constituir a radicalidade (de atuação política e pedagógica) entrando na jaula do tigre para apanhar suas crias (como costuma nos dizer Gaudêncio Frigotto, referindo-se a uma metáfora de Mao Tse-Tung), correndo sim o risco, e grande, de ser “comido” pelo “tigre”, mas pelo menos não correndo do risco de fazer a história...
Do ponto de vista de projetar a atuação neste movimento, destaco os dois grandes desafios postos para os diferentes sujeitos que se identificam com a constituição originária da Educação do Campo. O primeiro é o de intensificar a pressão por políticas públicas que garantam o acesso cada vez mais ampliado dos camponeses, do conjunto dos trabalhadores do campo, à educação. É preciso disputar a agenda do Estado, é preciso “sobrecarregar o sistema” (Wallerstein, 2002) com as demandas do pólo do trabalho (demandas de acesso que são de forma e conteúdo) para que, no mínimo, as contradições apareçam com mais força.
O segundo desafio é o de radicalizar a Pedagogia do Movimento, entendendo-a fundamentalmente como um processo formativo de base dos trabalhadores que recupere sua “humanidade roubada” (Paulo Freire) e seja capaz de romper com a estrutura de valores, com a visão de mundo, que os faz reféns da lógica do capital, politizando assim a própria luta pelo direito às formas de educação consagradas pela sociedade atual e fortalecendo seu engajamento massivo nas lutas pela superação do capitalismo. Isso inclui uma dimensão grandiosa, que é a de perceber-se como sujeito da história, que é também ser sujeito de seu próprio processo de formação para se construir como tal. Nessa perspectiva, a Pedagogia do Movimento assume também uma intencionalidade educativa na direção de preparar os trabalhadores para a construção prática deste novo modelo de produção, de tecnologia, e para as novas relações sociais que poderão começar a ser produzidas nesse movimento, o que implica na reapropriação crítica de iniciativas já existentes e bem antigas, especialmente no âmbito de uma produção diversificada e comprometida com o equilíbrio ambiental e humano.

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