A Via Campesina Brasil e a questão das sementes

1. As sementes e a origem da civilização

No princípio, o ser humano vivia de plantas silvestres, da caça e da pesca. Pouco a pouco, as pessoas foram observando as plantas de seu interesse, selecionando e utilizando aquelas que lhes davam mais rendimento. Assim, as plantas que produziam frutos e sementes comestíveis foram as primeiras a serem aproveitadas na alimentação.

A agricultura teve origem nas regiões montanhosas dos países de clima quente e temperado. As plantas cultivadas se espalharam pelo mundo principalmente através da migração humana.

Da pré-história aos tempos atuais, o milho, a batata e otomate saíram da América e foram para a Europa. O arroz saiu da Ásia e veio para a América. Com o passar do tempo, essas plantas se adaptaram em cada região onde eram cultivadas e selecionadas pelos processos naturais e simples dos agricultores. E assim surgiram as sementes rústicas, muitas delas bem adaptadas e totalmente conhecidas pelos agricultores.

A partir do início do século XX, os recursos genéticos vegetais, uma herança comum de toda a humanidade há mais de 10.000 anos, foram sendo transformados, gradual e crescentemente, em propriedade de um reduzido grupo de empresas privadas estadunidenses e européias.

Soberanos, Escravos e Tiranos

Os agricultores e principalmente as agricultoras, foram os primeiros cientistas empíricos da humanidade. Desde os tempos mais remotos, os agricultores têm conservado, selecionado e melhorado suas sementes para semeadura, inclusive realizando trocas com outros grupos camponeses, num processo de partilhas que lhes permitiam aumentar a diversidade genética à sua disposição. Com essa prática milenar, o resultado foi uma impressionante diversidade de cultivos e variedades utilizadas na produção agrícola.

Há muito tempo já se sabe que existem regiões em que a diversidade de espécies é maior. Esses locais se chamam Centros de Diversidade: regiões ao redor do mundo que abrigam reservatórios de material genético que pode ser transferido para plantações através de técnicas tradicionais de melhoramento genético.

E é nos países mais pobres, nos países do terceiro mundo, que se encontra a maior variedade de espécies. Para se ter uma idéia do problema, na década de 1970, das 200 espécies vegetais cultivadas na Califórnia – Estados Unidos, nenhuma era originária daquele país.

Daí a importância das sementes para o que chamamos de SOBERANIA ALIMENTAR, quando um povo tem o direito de definir sua própria produção, distribuição e consumo de alimentos. Um povo que não produz sua própria comida é povo escravo, pois depende de outros povos para se alimentar. Nenhuma nação será soberana se não tiver o domínio da produção de suas sementes.

Hoje, está se perdendo grande parte desta diversidade. Muitas dessas variedades estão desaparecendo e se extinguindo. Com o modelo capitalista de “modernização” da agricultura, a diversidade está drasticamente reduzida e o agricultor tornando-se cada vez mais dependente da aquisição dos cultivares impostos pelos pacotes tecnológicos.

Antes, as sementes pertenciam aos povos camponeses e indígenas. Pertenciam a toda a comunidade, era um bem comum, um símbolo da vida. Tanto que, em muitas culturas, as sementes eram vistas como algo sagrado.

Hoje, as sementes se tornaram mercadoria. Representam apenas negócios, lucros e a exploração e o domínio dos produtores rurais de todo o mundo por grandes empresas capitalistas multinacionais.

Não foi por acaso que as grandes empresas multinacionais de venenos abocanharam as empresas de produção de sementes. O negócio é extremamente lucrativo para elas, pois, junto com a venda das sementes, são vendidos ao agricultor os agrotóxicos e os adubos químicos que elas próprias – as multinacionais - industrializam. A semente, hoje industrializada pelos grandes monopólios, é um produto viciado, isto é, está drogada, pois só se reproduz se esse pacote agronômico for seguido à risca.

Essa apropriação privada da geração, reprodução e distribuição de novas variedades de sementes pelas empresas privadas multinacionais, assim como o controle da oferta dos insumos que elas requerem, vêm submetendo os povos de todo o mundo a uma tirania de novo tipo.

2. A “Revolução Verde” e seus prejuízos

Toda essa tecnologia foi introduzida com a chamada“Revolução Verde”. Em vez de aumentar o desenvolvimento dos povos, fez com que eles ficassem cada vez mais dependentes da indústria agroquímica. Com o monopólio da produção das sementes; e o desaparecimento da diversidade genética, o futuro da humanidade está em risco.

Agora, a segunda fase da “Revolução” está em pleno andamento, com a expansão dessas multinacionais no controle da produção e o comércio de sementes; e, quem controla as sementes, controla todo o sistema alimentar.

O mecanismo é simples e fácil de entender: as multinacionais controlam a produção e o comércio de sementes que são “melhoradas”, eliminando as resistências naturais e aumentando a vulnerabilidade das culturas. Cria-se, assim, a dependênciados agrotóxicos. As multinacionais que fabricam agrotóxicos são as mesmas que controlam o “melhoramento”, a produção e a comercialização das sementes. A uniformidade genética leva à perda de variedades e à vulnerabilidade das plantas às pragas e doenças.

Fecha-se o cerco da dependência, e as plantas transgênicas coroam o esquema. Eis porque as multinacionais estão tão interessadas em patentear variedades e cultivares de plantas. É a proteção oficial de sua pirataria e banditismo.

Os povos pré-históricos alimentavam-se de mais de 1.500 espécies de plantas e pelo menos 500 dessas espécies e variedades têm sido cultivadas ao longo da história. Hoje, alimentamo-nos basicamente com apenas 30 vegetais cultivados e, desses, trigo, arroz, milho e soja representam mais de 85% do consumo de grãos.

A agricultura de subsistência cultiva as principais plantas alimentícias há mais de 10.000 anos. Privá-los desse recurso é, pelo menos, uma perversidade, até porque o agricultor de subsistência é um melhorista nato, porque sempre, há milênios, tem reservado para o próximo plantio, as sementes das melhores plantas.

Ao privá-lo dessa possibilidade, o agricultor se vê roubado em sua herança mais significativa, equilibrada e barata, que são as variedades locais cultivadas há milênios. Por outro lado, a segurança do abastecimento e a base para um amplo melhoramento vegetal estão ligadas a que os agricultores se mantenham no ambiente rural. Essas famílias protegerão, como têm feito há milênios, os recursos genéticos vegetais melhor do que qualquer banco de genes.

As sementes são herança comum de todos os povos e não podem ser apropriadas por quaisquer empresas privadas. O acesso ao material genético é um direito natural da humanidade. Não tem dono!

3. A biotecnologia e os transgênicos

São três as causas principais da tirania econômica, social e política determinada pelo monopólio mundial das sementes:

a) A primeira causa é o crescente desenvolvimento dos métodos e técnicas de melhoramento de plantas por empresas privadas. Esses métodos produziram um grande número de sementes congênitas, híbridas, sintéticas; contemporaneamente, produziram também organismos geneticamente modificados (OGM), conhecidos como transgênicos. Para que apenas essas empresas pudessem se beneficiar com os resultados dessa tecnologia e garantir grandes lucros, os governos de vários países em todo o mundo foram pressionados a aprovarem leis que garantissem os direitos dos melhoristas e o patenteamento dos seus produtos. São as chamadas LEIS DE PATENTES. Aproveitando-se dessas leis, as grandes empresas saqueiam e roubam nossa diversidade, registram em seus nomes plantas que nossos ancestrais sempre utilizaram e, ao mesmo tempo, proíbem outras pessoas e empresas de aproveitarem os melhoramentos genéticos.

b) Uma segunda causa foi a diminuição paulatina dos investimentos dos governos nas áreas de pesquisa em agricultura, tanto em empresas públicas de assistência técnica quanto em universidades. Assim, a geração de conhecimentos e de descobertas só poderia favorecer a acumulação capitalista das corporações privadas. Para isso, os governos tomaram várias medidas beneficiando grandes empresas, tais como:

· A redução dos recursos públicos para a pesquisa na agricultura;

· O fechamento de centros de pesquisa ou a redução drástica do seu pessoal;

· A realização de acordos e convênios entre as instituições governamentais e empresas privadas para a realização de pesquisas, tendo em vista os financiamentos efetivados pelas empresas;

· O amplo e continuado processo de formação de pessoal no exterior em universidades altamente dependentes de financiamentos privados, com a conseqüente ideologização da pesquisa a partir dos interesses das empresas privadas;

· A cooptação de pesquisadores pelas fundações e empresas privadas através de bolsas de estudos avançados, de créditos para a pesquisa, de viagens ao exterior para a participação em simpósios, congressos e encontros, de participação comercial pela venda dos produtos gerados;

. As pressões econômicas, políticas e ideológicas (os“lobbies”) sobre os parlamentares e os dirigentes do Poder Executivo para a aprovação de legislação favorável aos interesses da privatização da pesquisa na agricultura e a redução dos orçamentos para a pesquisa e para a formação avançada de pessoal das instituições públicas;

A posição alienada de grande parte dos pesquisadores da agricultura que, em nome da ciência, aceitam a hegemonia dos interesses privados na geração de conhecimentose a transformação do saber em “capital”.

c) A terceira causa é conseqüência das duas primeiras: a perda continuada da capacidade dos agricultores de produzirem as suas próprias sementes.

Como as políticas públicas incentivavam o uso de sementes melhoradas como as híbridas e, em alguns países, as transgênicas, cujas patentes eram e são propriedades privadas, as sementes dos camponeses deixaram de ser uma alternativa de plantio e foram desaparecendo dos mercados. A intenção das grandes empresas é reduzir cada vez mais a variedade de sementes. Desta forma, as sementes crioulas são perdidas de propósito, porque apresentam alta variabilidade. A tendência é para uma base genética limitada. Com esta eliminação aos poucos das sementes “crioulas”, o agricultor perdeu em diversidade genética, mas também foi perdendo sua auto-estima, sua capacidade de melhorar geneticamente as sementes. Foi perdendo seu papel e sua identidade.

A armadilha funciona assim: quando se extinguem variedades tradicionais de sementes, as comunidades perdem uma parte de sua história e de sua cultura. As espécies vegetais perdem uma parte de sua diversidade genética. As gerações futuras perdem algumas opções e a geração presente perde a confiança em si mesma. O tipo de semente que o amponês semeia determina em grande medida suas necessidades de fertilizantes e agrotóxicos. A semente influi na necessidade do maquinário e determina qual é o mercado para a colheita... As comunidades que perdem as variedades tradicionais, que, durante séculos, adaptaram-se às suas necessidades, perdem o controle e tornam-se dependentes para sempre de fontes externas de sementes e de produtos químicos necessários para cultivá-las e protegê-las.

Quando as grandes empresas determinam o que o agricultor deve plantar, está determinando também o que nós devemos comer. Com poucas alternativas de alimentos e bombardeadas por propagandas dos meios de comunicação, o consumidor também se torna refém dessa armadilha.

Uma das formas usadas pelas grandes empresas para dominarem o mercado de sementes e convencerem governos a se submeter a seus planos é dizer que as sementes híbridas ou transgênicas combatem a FOME. Desde a década de 1950, justamente no início da “Revolução Verde”, que se afirma que é necessário aumentar a produtividade agrícola para combater a fome no mundo. A Organização para a Alimentação e a Agricultura – FAO, das Nações Unidas, foi uma das instituições multilaterais que estimulou a introdução de sementes híbridas no mundo com essa finalidade.

As grandes empresas se tornaram cada vez maiores. Compraram outras empresas, dominaram o mercado, controlaram os agricultores. E a fome continua. Hoje, em todo mundo, 800 milhões de pessoas passam fome e 2,4 bilhões são mal nutridas. Está claro que não falta alimento. Com a produção atual de alimentos, cada pessoa no mundo poderia comer todos os dias: 1,7 kg de cereais, feijões e nozes; 200 g de carne, leite e ovos; e 0,5 kg de frutas e vegetais.

A verdadeira causa da fome está no latifúndio e na falta de apoio à agricultura familiar, que marginaliza 1,35 bilhões de agricultores e suas famílias. E agora, mais uma vez, as grandes empresas repetem a história e o truque de que com as sementes transgênicas é possível acabar com a fome, desta vez apoiadas por um leque maior de poderosas organizações, como a Organização Mundial do Comércio – OMC, o Fundo Monetário Internacional – FMI, o Banco Mundial e os meios de comunicação de massa.

Os transgênicos não têm por objetivo acabar com a fome, mas sim aumentar o megafaturamento de algumas multinacionais. Para se ter uma ordem de grandeza desse mercado, se o Brasil admitisse a soja transgênica da Monsanto, essa empresa poderia abraçar um mercado de sementes e herbicidas de 2 a 3 bilhões de dólares/ano.

Caso a Monsanto consiga impor sua lei no Brasil, 80% das sementes “industriais” de milho passarão a ser transgênicas e todos os cultivos de milho serão contaminados. Vinte e cinco por cento do milho nos EUA é transgênico, mas 75% de todo o milho cultivado está contaminado. As empresas transnacionais apostam em uma contaminação geral dos cultivos no mundo, numa estratégia criminosa para impor seus interesses.

4. Saídas: Resistência, Associação e Cooperação

Cinco pontos podem ser considerados como fundamentais para a luta contra a tirania do domínio das sementes:

Lutar contra a propriedade intelectual de qualquer forma de vida;

Considerar os recursos genéticos como um patrimônio da humanidade;

Lutar para que os governos decretem moratória na bioprospecção exploração, coleção e recoleção, transporte e modificação genética) enquanto não existirem mecanismos de proteção dos direitos de nossas comunidades camponesas e indígenas para prevenir e controlar a biopirataria;

Considerar a biodiversidade como a base para garantira soberania alimentar, como um direito fundamental e ásico dos povos, posições essas que não são negociáveis;

Resgatar, cada um segundo suas possibilidades, e pôr em prática o plantio e a distribuição em massa das sementes “crioulas” de e em todo o mundo, como uma forma de resistência popular e de superação do modelo agrícola dominante.

(Texto elaborado pela Via Campesina gaúcha e publicado

Em janeiro/2003, durante o Fórum Social Mundial-Porto Alegre/RS

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